O Prêmio Nobel de
Literatura de 1988, o escritor português José Saramago (1922-2010), deixou um
projeto literário inacabado - aquele que seria o último romance do escritor a
ser publicado em vida. O projeto ficara em fase de conclusão, em virtude da morte
de Saramago em 2010. O escritor crítico-polêmico deixou três capítulos em seu
computador pessoal, daquilo que seria seu próximo livro com o título Alabardas,
Alabardas, Espingardas, Espingardas, uma expressão retirada da obra Exortação
da Guerra, uma tragicomédia de Gil Vicente.
A palavra “espingarda” é de
conhecimento da maioria dos leitores, já “alabarda”, carece de significado – é
a denominação de uma arma produzida na idade média, na qual se constituía de
uma longa haste, normalmente em madeira, rematada por uma peça de metal
pontiaguda, onde uma das extremidades laterais assemelha-se a um machado,
enquanto a outra extremidade tem a forma de gancho ou esporão. Suspeita-se,
portanto, que o título faria uma alusão à evolução técnica das armas no tempo,
já que a espingarda é uma arma mais recente, de fogo (com uso de pólvora), de
médio alcance, enquanto a alabarda é uma arma de combate corporal de curto
alcance surgida na idade média.
O livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas –
José Saramago: com textos de Fernando Gomes Aguilera, Luiz Eduardo Soares e
Roberto Saviano, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, São Paulo, 2014, p.
111. É, portanto, uma edição póstuma de três capítulos escritos pelo autor, que
aproveitando-se de sua experiência pessoal no contexto europeu da Guerra Civil
Espanhola (1936-1939), assim como, da 2ª
Guerra Mundial (1939-1945), quando o autor vivendo em Portugal, pariu, como
diria Sócrates, a ideia do livro. A obra ainda trás anotações de Saramago e
textos dos três autores componentes do título, sendo o primeiro espanhol, o
segundo brasileiro e o último italiano. O romance trata da vida de um homem de
nome Artur Paz Semedo, burocrata de uma fábrica de armamentos, denominada “Produções
Belona S.A.”. Logo aí, na primeira página, se pode perceber o espírito
irrequieto de Saramago, ao escolher o nome da fábrica, Belona, explicitando e explicando no texto, a associação e alusão
intencional ao nome da deusa grega da guerra – deusa Belona.
O protagonista, Artur Paz
Semedo, que é funcionário administrativo da fábrica, também é apresentado logo
no início como um apaixonado pelas armas de fogo, chegando a ser conhecido
pelas reações de “gozo” durante as apresentações aos funcionários, que a
fábrica fazia dos novos modelos de armas. Amante das armas, amante da guerra e
de tudo relacionado a elas, um ferrenho defensor da causa, chegando até a
encontrar justificativa para o uso de bombas nucleares. Essa paixão pelas
guerras teria sido o motivo que levara sua ex-mulher a deixa-lo, pois a mesma,
chamada Felícia, é apresentada como uma pacifista radical, que enxergava no
ex-marido uma contradição de vida.
O romance estabelece um
ponto de partida para a trama – o momento em que Artur Paz Semedo, após ter
assistido ao filme L’Espoir, de André Malraux, resolve ler o livro, inspirador
do filme, do mesmo autor e, com o mesmo título, que trata da Guerra Civil
Espanhola. Um fato, extraído da leitura do livro, perturba profundamente o
espírito de Artur Paz Semedo - neste episódio do romance, Saramago, estabelece
o teor ficcional da história humana entre Semedo e Felícia, regada a um grande
conflito moral, o qual o leitor descobrirá com a leitura da obra.
Entra em cena, a partir daí, a figura do presidente da
empresa, o Administrador-delegado, que com autorização e interesse do mesmo,
dar-se-á, por parte do protagonista Artur Paz Semedo, uma investigação nos
arquivos antigos da fábrica (anos trinta do século XX), a qual participara de
guerras importantes no mundo, na qualidade de fornecedora de armas e, provavelmente,
articuladora, em nível de governos nacionais, do ambicioso e poderoso comércio
de armas.
Saramago mantém seu estilo
literário da escrita, desconsiderando a pontuação: sem usar pontos de
interrogação e pontos de exclamação; raramente usando parágrafos; com falas
inseridas no texto, utilizando apenas letra inicial maiúscula para as mesmas; e
o nome dos personagens em letras minúsculas. Sabia como nenhum outro
utilizar-se inteligentemente da ironia, principalmente, ao tratar daquilo que
ele chamava de “mito” da religião, o que ficou bem evidenciado nas obras O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991)
e Caim (2009).
Por fim, após o texto inacabado do autor, seguem as anotações
de Saramago, nas quais aponta a preocupação que fecundara a ideia de escrever
sobre o tema – seu questionamento gerador fora o porquê de nunca ter havido uma
greve numa fábrica de armamento, utilizando-se ainda, do gancho a cerca do
relato de uma bomba que não explodira na Guerra Civil da Espanha, associando
tal fato, à referência contido na obra L'Espoir
(Malraux), sobre operários de Milão
fuzilados por sabotarem obuses. Nos mesmos relatos, Saramago já adianta
ironica e surpreendentemente, como terminaria o livro: com um sonoro “vai à merda”, proferido por Felícia.
Fernando Carneiro