terça-feira, 14 de outubro de 2014

O último “tiro” de José Saramago: uma face da violência humana



O Prêmio Nobel de Literatura de 1988, o escritor português José Saramago (1922-2010), deixou um projeto literário inacabado - aquele que seria o último romance do escritor a ser publicado em vida. O projeto ficara em fase de conclusão, em virtude da morte de Saramago em 2010. O escritor crítico-polêmico deixou três capítulos em seu computador pessoal, daquilo que seria seu próximo livro com o título Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, uma expressão retirada da obra Exortação da Guerra, uma tragicomédia de Gil Vicente.


A palavra “espingarda” é de conhecimento da maioria dos leitores, já “alabarda”, carece de significado – é a denominação de uma arma produzida na idade média, na qual se constituía de uma longa haste, normalmente em madeira, rematada por uma peça de metal pontiaguda, onde uma das extremidades laterais assemelha-se a um machado, enquanto a outra extremidade tem a forma de gancho ou esporão. Suspeita-se, portanto, que o título faria uma alusão à evolução técnica das armas no tempo, já que a espingarda é uma arma mais recente, de fogo (com uso de pólvora), de médio alcance, enquanto a alabarda é uma arma de combate corporal de curto alcance surgida na idade média.


O livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas – José Saramago: com textos de Fernando Gomes Aguilera, Luiz Eduardo Soares e Roberto Saviano, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, São Paulo, 2014, p. 111. É, portanto, uma edição póstuma de três capítulos escritos pelo autor, que aproveitando-se de sua experiência pessoal no contexto europeu da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), assim como, da  2ª Guerra Mundial (1939-1945), quando o autor vivendo em Portugal, pariu, como diria Sócrates, a ideia do livro. A obra ainda trás anotações de Saramago e textos dos três autores componentes do título, sendo o primeiro espanhol, o segundo brasileiro e o último italiano. O romance trata da vida de um homem de nome Artur Paz Semedo, burocrata de uma fábrica de armamentos, denominada “Produções Belona S.A.”. Logo aí, na primeira página, se pode perceber o espírito irrequieto de Saramago, ao escolher o nome da fábrica, Belona, explicitando e explicando no texto, a associação e alusão intencional ao nome da deusa grega da guerra – deusa Belona. 


O protagonista, Artur Paz Semedo, que é funcionário administrativo da fábrica, também é apresentado logo no início como um apaixonado pelas armas de fogo, chegando a ser conhecido pelas reações de “gozo” durante as apresentações aos funcionários, que a fábrica fazia dos novos modelos de armas. Amante das armas, amante da guerra e de tudo relacionado a elas, um ferrenho defensor da causa, chegando até a encontrar justificativa para o uso de bombas nucleares. Essa paixão pelas guerras teria sido o motivo que levara sua ex-mulher a deixa-lo, pois a mesma, chamada Felícia, é apresentada como uma pacifista radical, que enxergava no ex-marido uma contradição de vida.



O romance estabelece um ponto de partida para a trama – o momento em que Artur Paz Semedo, após ter assistido ao filme L’Espoir, de André Malraux, resolve ler o livro, inspirador do filme, do mesmo autor e, com o mesmo título, que trata da Guerra Civil Espanhola. Um fato, extraído da leitura do livro, perturba profundamente o espírito de Artur Paz Semedo - neste episódio do romance, Saramago, estabelece o teor ficcional da história humana entre Semedo e Felícia, regada a um grande conflito moral, o qual o leitor descobrirá com a leitura da obra.

Entra em cena, a partir daí, a figura do presidente da empresa, o Administrador-delegado, que com autorização e interesse do mesmo, dar-se-á, por parte do protagonista Artur Paz Semedo, uma investigação nos arquivos antigos da fábrica (anos trinta do século XX), a qual participara de guerras importantes no mundo, na qualidade de fornecedora de armas e, provavelmente, articuladora, em nível de governos nacionais, do ambicioso e poderoso comércio de armas.



Saramago mantém seu estilo literário da escrita, desconsiderando a pontuação: sem usar pontos de interrogação e pontos de exclamação; raramente usando parágrafos; com falas inseridas no texto, utilizando apenas letra inicial maiúscula para as mesmas; e o nome dos personagens em letras minúsculas. Sabia como nenhum outro utilizar-se inteligentemente da ironia, principalmente, ao tratar daquilo que ele chamava de “mito” da religião, o que ficou bem evidenciado nas obras O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Caim (2009).



Por fim, após o texto inacabado do autor, seguem as anotações de Saramago, nas quais aponta a preocupação que fecundara a ideia de escrever sobre o tema – seu questionamento gerador fora o porquê de nunca ter havido uma greve numa fábrica de armamento, utilizando-se ainda, do gancho a cerca do relato de uma bomba que não explodira na Guerra Civil da Espanha, associando tal fato, à referência contido na obra L'Espoir  (Malraux), sobre operários de Milão  fuzilados por sabotarem obuses. Nos mesmos relatos, Saramago já adianta ironica e surpreendentemente, como terminaria o livro: com um sonoro “vai à merda”, proferido por Felícia.

Fernando Carneiro

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O eleitor brasileiro e o próprio vômito nas urnas



Na última terça-feira, 26 de agosto de 2014, aconteceu na Rede Bandeirantes de Televisão, o primeiro debate aberto entre os presidenciáveis das eleições de outubro próximo.

Os debatedores foram os candidato Pastor Everaldo (PSC), Luciana Genro (PSOL), Marina Silva (PSB), Aécio Neves (PSDB), Dilma Rousseff (PT), Levy Fidelix (PRTB) e Eduardo Jorge (PV). Já o mediador foi o jornalista e apresentador de telejornal Ricardo Boechat.

Já na primeira pergunta, genérica a todos os candidatos, sobre a crise na segurança pública, um fato chamou a atenção dos telespectadores: nenhum dos debatedores identificou as questões sociais como causa da violência e da criminalidade. Isso pelo fato de que todos sugeriram como soluções, questões do tipo: o aumento de verbas públicas para a segurança; melhoria de salários de policiais; diminuição da maioridade penal; construção e/ou privatizações do sistema presidiário; entre outras velhas ideias insuficientes.

Não que tais questões sejam desimportantes, mas nenhum dos candidatos demonstrou o entendimento que a violência crescente e descontrolada teria relação com as condições sociais da população, em especial, das camadas mais carentes. O descaso com a educação, com o saneamento básico, com o esporte, com a saúde pública, com a cultura, com a garantia do emprego, com a moradia digna, etc, parecem, na leitura dos ilustres candidatos, não ter algo haver com os altos índices de violência.

A impressão passada à população é a de desconhecimento da realidade dos brasileiros, associado à falta de programas sérios de governo, projetos de Estado a longo prazo e da falta de vontade política para a solução do problema crônico da segurança pública, por parte das candidaturas apresentadas.

Mais desanimador, ainda, é o fato de sabermos que, mesmo se medidas e soluções mais inteligentes e eficazes fossem apresentadas por parte dos presidenciáveis, estas não seriam confiáveis pois, como as experiências passadas, até o momento nos mostraram, tais ideias e promessas não passam de "discursos prontos" de cunho eleitoreiro.  Esses discursos que estratégica e pontualmente são fabricados terminam só se realizando no mundo das ideias, pois na prática prevalecem  os interesses dos partidos, visando, exclusivamente, a manutenção do poder, a tal "governabilidade", sendo que para isso, a classe política dominante, literalmente, se vende aos interesses privados, deixando o povo numa situação crônica de insegurança pública, há décadas, pra não dizer séculos. Isso ainda, para não mencionar o envolvimento de políticos importantes com o tráfico de drogas, o tráfico de armas e interesses na manutenção da miséria de seus currais eleitorais.

Por fim, pouca esperança há, pois o povo não possui a cultura de cobrar promessas nas ruas e muito menos de fazer valer sua insatisfação nas urnas, perpetuando assim, sanguessugas do sangue nacional no poder, a exemplo de Sarney, Renan, Collor, Maluf, entre tantos outros, que descaradamente servem, quando no poder, aos seus próprios intereses, em detrimento dos interesses da população, que com seus votos, os escolhe como representantes.

Acorda eleitor brasileiro! 
Ou então, pode fazer a escolha de continuar agonizando no próprio vômito nas urnas.

Por Fernando Carneiro.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

As eleições 2014 e um possível discurso do ódio




Um fato na política nacional, em tempos passados, chamou a atenção de boa parte da população brasileira: a eleição do deputado-pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão de São Paulo (PSC-SP), para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara de Deputados, sendo o mesmo, também, fundador da Igreja Assembléia de Deus Catedral do Avivamento.

Desde a eleição do referido político para aquela função, grupos organizados sob a égide da defesa dos direitos humanos manifestaram-se publicamente (caminhadas, marchas, reuniões, apitaços, entrevistas, declarações públicas, cartas abertas etc) pela renúncia do pastor-deputado, sem contar, parte da classe artística nacional, instituições religiosas (cristãs e não-cristãs), conselhos de igrejas (CONIC), políticos de diversos partidos, grupos LGBT, grupos ligados aos movimentos negros, entre outros. Tudo aquilo, inicialmente, sem surtir o efeito desejado, pois Feliciano continuou na função declarando que não renunciaria, o que se constatou. O então presidente da CDHM garantiu-se no posto, pelo fato de que sua eleição atendera aos ritos regimentais internos da Câmara dos Deputados,  não ferindo o regimento interno, nem as leis, nem a Constituição Federal.

O fato é que houve uma rejeição do discurso do deputado por parte da sociedade, principalmente nas redes sociais. Tal rejeição teria sido pelo fato de ele ser evangélico? Pelo fato de ser pastor? Se fossem esses os motivos, o que teria levado outros sacerdotes evangélicos e outras denominações cristãs a pedir a renúncia daquele político, naquela ocasião?

Pareceu que o que estava em jogo era o conflito de direitos fundamentais. De um lado, a “liberdade de expressão” e de outro lado a “dignidade da pessoa humana”, esta última refletida nos direitos das minorias, as quais a CDHM teria, teoricamente, a missão constitucional e regimental de proteger. O estopim da crise aconteceu pelo fato de o pastor-deputado ao tempo que exercitava sua liberdade de expressão, também praticava um “discurso agressivo e incitador ao ódio”, em nome de Deus, contra determinados grupos (homossexuais, mulheres, candomblecistas, umbandistas e negros) considerados minoria da população e, portando, objeto dos trabalhos daquela comissão, presidida por Feliciano, à época.

O pastor-deputado foi acusado de  pregar nos púlpitos das igrejas, nos microfones do Congresso Nacional e nas entrevistas para TV e rádios, idéias consideradas discriminatórias contra tais minorias, contribuindo para o desenvolvimento de um discurso do ódio (idéias racistas, homofóbicas, sexistas e de intolerância religiosa). Ficou notório, que o parlamentar em questão, detentor de um discurso fundamentalista religioso ultraconservador encontrava-se a serviço dos interesses da “bancada evangélica” no Congresso Nacional, que organizava-se, segundo alguns, em vista de uma ação política com interesses específicos de cunho conservador, contra o secularismo do estado, o pluralismo, a racionalidade e o liberalismo, portando-se ainda, naquele período, como detentores de uma verdade considerada sagrada e superior a qualquer outra lógica.

Seria importante, hoje, às vésperas das eleições de 2014, que aquele episódio seja utilizado  para uma reflexão sobre os limites das liberdades, pois estas, não são absolutas, possuindo seus limites. O fato protagonizado pelo deputado-pastor mostrou que a liberdade de expressão foi exercida de uma forma que provocou o desencadeamento ou a incitação ao racismo, aos preconceitos e à intolerância religiosa, referindo-se na maioria das vezes às minorias, transformando esta liberdade em “discurso do ódio”, pois configurou-se através de palavras que tenderam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo, sexualidade ou religião, instigando a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”. 

Finalizando, faz-se prudente alertar aos mais atentos sobre o eventual surgimento de discursos similares nas eleições vindouras, cuja propaganda política já foi iniciada nos meios de comunicação. Será que haverão brados felicianos nas eleições de 2014? Fiquemos atentos e vigilantes.
Fernando Carneiro

Vera Cabôcla





Sê tu uma bênção
Sê tu um raiar
Ó Vera minha deusa
Ó Vera meu mar

Minha flor descoberta
Meu sol a raiar
Minha nêga cabocla
Minha rainha do mar 
 
Minha amada amante
Minha Lilith errante
Dos lábios bem quentes
Do corpo escaldante

Um sonho no céu
Outro sonho no mar
Me ensinou a viver
Me ensinou a amar

Teus olhos pedintes
Teus cabelos ao ar
Teu corpo suave
Sobre o meu a deitar

Teu suor refrescante
No meu corpo a pingar
Parece uma sereia
Saindo do mar

Tu és minha cabrita
Tu és minha ovelha
Tu és minha gazela
Tu és minha videira

Os teus olhos são cristais
Os teus lábios são doce mel
Os teus seios são montanhas
Que me levam para o céu

Ó mina da minha vida
Luz do meu viver
Por ti me sacrifico
Faço tudo por você

Por ti sou apaixonado
Pode até não parecer
Te peço, fica comigo
Até o dia que eu morrer

Nunca vou te abandonar
Muito menos te esquecer
Eu te adoro, eu te quero
Eu te amo pra valer

És minha bela companheira
És meu pecado e meu perdão
És tu pra mim, uma santa
A quem te devo devoção

És mais do que uma deusa
És mais do que o trovão
És dona do meu amor
Destinatária do meu tesão

Filha do sol e do mar
Filha da linha do equador
Carrega no sangue um esplendor
Carrega no peito um amor

És filha do congar
Dos índios tupinambás
Na mata és a cabocla
No mar és iemanjá

És índia de corpo e alma
Da tribo dos tremembés
Teus peitos são umas dunas
Teu sexo igarapés

Menina do cabelo longo
Escuta o meu clamor
Tu és minha cabocla
Tu és o meu amor

Tu és minha iemanjá
A rainha do meu congar
Tu és meu orixá
Minha cabocla tupinambá

Fernando Carneiro,
Salvador, Bahia, 20 de julho de 2013.

Embriagado, estúpido e ridículo







Uma certa feita, fui adjetivado de embriagado, estúpido e ridículo, simplesmente pelo fato de, em um artigo, ter defendido o respeito aos homossexuais, diante da demonização e discriminação, de caráter homofóbica, por parte de alguns discursos religiosos.

Em resposta, inicialmente agradeci pela gentileza dos adjetivos atribuídos a minha pessoa e cuidei de fazer algumas argumentações sobre o episódio, o qual fora provocado pela fúria de alguém que se dizia religioso de fundamentação cristã evangélica.

Ao ser taxado de embriagado, argumentei que a embriaguez por si só não se constituiria num problema, mas sim, talvez, a postura do embriagado e as consequências desses comportamentos. Se o embriagado viesse a se comportar de forma pacífica e amorosa, como alguém que se prestasse a defender pessoas violentadas por preconceitos arraigados de nossa sociedade, neste caso, a embriaguez evocaria o senso de justiça, portanto, tornar-se-ia positiva e elogiável. Mas se agisse de forma agressiva e fundamentalista, convenhamos, haveria ali um foco de maldade, ignorância ou irracionalidade.

Quanto à estupidez, talvez o acusador se utilizasse do fato de este acusado, não ter sido reprodutor de pensamentos preconceituosos reproduzidos indiscriminadamente e irracionalmente por parte de nossa sociedade, tendo aval, fundamentação e legitimação no discurso religioso da maioria das denominações cristãs, em especial, daqueles ditos, evangelistas midiáticos de tradição evangélica. Seria a estupidez, o reconhecimento da pluralidade do ser humano quanto às diversas culturas, religiões, comportamentos sexuais ou, seria a estupidez o exercício do respeito à individualidade e à vida privada do outro? Seria talvez a estupidez, a utilização do discurso a cerca do sagrado ou de Deus, com a finalidade de impor aos outros sua estreita visão de mundo e da realidade, vindo a praticar assim uma violência simbólica de caráter religiosa?

Quanto a ser ridículo, seria talvez, pelo fato deste não expressar um pensamento religioso hipócrita de consequências famigeradas e desumanas alimentado por comportamentos tribais praticados há mais de dois mil anos, homologados em nome de Deus, através, sempre, de um mediador humano.

Salvo algum equívoco, não seria o próprio discurso religioso que afirmaria a vida como bonita e prazerosa, a qual deveria ser aproveitada com amor, com carinho, com respeito, com acolhimento, com bondade e com um olhar fraterno? Estaríamos aí, diante de uma divina contradição?

Portanto, ressignificando os adjetivos a mim atribuídos, sinto-me hoje, confortável e orgulhoso por ser um estúpido, ridículo e embriagado.

Fernando Carneiro.

O Filho do Delta



NÃO PERMITA DEUS QUE EU MORRA SEM QUE EU VOLTE PARA LÁ
PARA O DELTA DO PARNAÍBA, ONDE É O MEU LUGAR
A TERRA DOS TREMEMBÉS E TAMBÉM DOS ARAYÓS
A TERRA DO RIO MAGU, A TERRA DA MÃE LALÁ

A MINHA TERRA TEM PALMEIRAS DE CARNAÚBA E BURITI
A MINHA TERRA TEM SABÃO, MAS TAMBÉM TEM O MANDI
A MINHA TERRA TEM CAMARÃO E TAMBÉM TEM O SAPOTI
A MINHA TERRA TEM GUABIRABA E TAMBÉM TEM O CRIOLI

JOÃO PERES É MINHA ORIGEM, LÁ PRAS BANDAS DO RIO MAGU

SOU FILHO DE ARAYÓ OU ENTÃO DE TREMEMBÉ
SOU FILHO DO VELHO DELTA, SOU FILHO DO CABARÉ
A AGUA É CRISTALINA E OS PEIXINHOS BANHAM NUS

FILHO DO SOL DO EQUADOR E DA DONA MARIA DAS GRAÇAS
FILHO DAS ÁGUAS DO NORTE E DE DONA FRANCISCA CARNEIRO
FILHO DAS AREIAS DAS PRAIAS E TAMBÉM DA BRISA DO MAR
MAMEI NO PEITO DE MOÇA, AMEI NO MEIO DAS GARÇAS

EU VI A GUARITA NASCER

SOU FILHO DA VELHA JUREMA
AMEI NA VELHA ATALAIA

TAMBÉM VI O PAI CHICO MORRER

NO SALÃO APRENDI A BRINCAR
SOU FILHO DO COMES E BEBES

A SANTINHA NÃO ENCOSTAVA POR LÁ
POIS LÁ DEUS NÃO PODIA ENTRAR

SOU FILHO DOS PÉS DE CAJU
SOU FILHO DAS RUAS DE AREIA

SOU FILHO DA PEDRA DO SAL
SOU FILHO DO VELHO MAGU

EU VI OS BANZEIROS DO RIO
EU VI AS ONDAS DO MAR
EU VI A NOITE CAIR
EU VI A CABOCLA DEITAR

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Nações Étnico-linguísticas Afro-brasileiras

Celebrantes da Páscoa Afro-indígena 2014 em Salvador - Bahia


Ao longo de mais de três séculos, enquanto a própria nação brasileira se formava e tomava corpo, milhares de africanos foram trazidos de variadas partes do continente africano. Não se tratava de um único povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas e religiões. Considerando a diversidade étnico-religiosa das populações trazidas da África para o Brasil, por força do sistema escravista colonial, tendo cada grupo étnico sua língua, crença, rito e identidade específicos, sendo originários de diversas culturas africanas e, ainda considerando, a simbiose natural com as contribuições indígenas e europeias realizada em território brasileiro, foram representadas na IV Páscoa Militar Afro-indígena de Salvador (foto acima), as principais Nações étnico-religiosas afro-indígena-brasileiras, da direita do leitor, para esquerda:

Nação Cabôclo ou Candomblé de Caboclo é considerado por muitos, uma variação do Candomblé Angola. Surge originalmente da assimilação de influências rituais indígenas, com a introdução do caboclo (ancestral indígena brasileiro, divinizado, considerado os donos da terra, tidos como curandeiros e/ou encantados). Cultuados, originalmente, em terreiros da Nação Angola e mais tarde em terreiros keto. Esta nação apresenta, ainda, uma diferenciação de rito e de iniciação, em relação aos candomblés ditos tradicionais. Como representante do Candomblé de Caboclo, o Tata de Inquice Valdemir Melo, sacerdote do Terreiro Unzó Mameto Bambuerecema (Terreiro Santa Bárbatra), localizado em Lauro de Freitas, Bahia.

Nação Congo-Angola, originária das regiões dos atuais países do Congo, República do Congo e Angola, ao sul da Linha do Equador. As línguas são da cultura banto, sendo as principais (quicongo, umbundo e quimbundo). A divindade suprema (Deus) é denominada Zambi. As divindades representantes das forças da natureza ou ancestrais divinizados são chamados Inkices. Como representante da nação Congo-Angola Mesoaji Iraildes Maria da Cunha, sacerdotiza do Terreiro Tumba Junçara, em Salvador, Bahia.

Nação Nagô-Keto, originária da região do Reino de Keto, na África Ocidental, abrangendo territórios dos atuais países da Nigéria, Benin e Togo. A língua desta nação é o iorubá. A divindade suprema é denominada Olorum. As divindades representantes das forças da natureza ou ancestrais divinizados são chamadas Orixás. Como representante da nação nagô-keto a Yalorixá Rosiclei Santana Nascimento (Mãe Rosiclei de Omolu), sacerdotisa do Terreiro Ilê Axé Omim Olwô Tapalepé, localizado no Nordeste de Amaralina, em Salvador, Bahia.

Nação Jeje-Mahim, originário da África Ocidental, atuais países da Nigéria, Gana, Togo e Benin (antigo Reino Daomé). As línguas são as dos grupo Fon. Para os povos Fon, a divindade suprema (Deus) é denominada Mawu. As divindades representantes das forças da natureza ou ancestrais divinizados são chamados Voduns. Como representante da Nação Jeje-Mina, convidamos a Gayaku Regina Maria da Rocha, de tradição Mahim, sacerdotiza do Humpamê Ayono Huntoloji, localizado em Cachoeira de São Félix, Bahia.


Nação Nagô-Ijexá, tradição trazida pelos africanos oriundos de Ilesa, localizada a sudoeste da atual Nigéria. A língua é o iorubá. A divindade suprema é Olorum e cultuando-se os orixás, num rito e ritmo diferenciado. Como representante da Nação Ijexá, convidamos a Ebomi Vânia Amaral, do Ilê Axé Kalé Bokum, localizado no bairro de Plataforma, em Salvador, Bahia. (foto à direita).

A Nação Umbandista ou Umbanda, religião polissincrética brasileira, com influência do catolicismo popular, candomblé de caboclo, cultos indígenas (pajelança) e espiritismo kardecista. Usa-se como línguas litúrgicas rituais, o português brasileiro popular e as línguas de matriz africana. Como divindades espirituais além das entidades africanas (orixás-keto, inquices-angola e voduns-jeje), seu panteão foi ampliado com entidades que são espíritos desencarnados, representantes das classes populares, a exemplo dos caboclos (antepassados indígenas divinizados), os pretos-velhos (símbolo do africano escravizado submetido ao sofrimento e associado à sabedoria ancestral e cura), os boiadeiros (mestiço que em vida fora um valente sertanejo, também com conhecimentos de cura), os marinheiros (homens do mar dados aos prazeres do amor, da bebida, da sedução e do dinheiro), os ciganos (predizentes do futuro) e outros. Como representante da Umbanda, o sacerdote umbandista Pai Raimundo de Xangô, do Centro Umbandista Paz e Justiça, localizado no bairro Luis Anselmo, em Salvador, Bahia.

Fernando Carneiro







quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Professor Jaime Sodré é homenageado pelo Neafro-EB



No último dia 07 de agosto, ano de 2014, o Profº Jaime Sodré foi homenageado pelo Neafro-EB (Núcleo de Estudo de Religiões de Matriz Africana e Indígena), durante cerimônia da Páscoa Militar Afro-indígena, em Salvador, na Bahia.



O título é conferido ao religioso afro e, acadêmico, por seu incondicional e constante apoio ao grupo, no sentido histórico e religioso, desde sua criação em 2011. Jaime Sodré tornou-se uma referência no mundo afro-religioso baiano, por atuar em defesa dos direitos do "povo de axé". Possui cargos religiosos em alguns terreiros a exemplo de Ogã do Bogum e Xincarongoma do Tanuri Junçara, sendo também professor universitário, escritor e historiador.



Em 2013, o Neafro-EB, titulou a Ialorixá do Terreiro Ilê Axé Omim Olwô Tapalepé, Rosiclei Santana como "Madrinha do Neafro", pelo fato de a mesma ter tido, desde a fundação do grupo, essencial papel nas questões religiosas, principalmente a cerca dos cultos e ritos organizados nas atividade religiosas nos quartéis.



Juntos, padrinho e madrinha, configuram uma importante base de sabedoria, representação e luta pelos direitos das religiões afro-indígena-brasileiras na sociedade soteropolitana, baiana e brasileira.

Ao professor Jaime Sodré, nosso axé!

Fernando Carneiro.


Candomblé e Umbanda nos Quartéis do Exército







Páscoa Militar de Matriz Africana e Indígena

No dia 07 de agosto de 2014 foi realizada, no Quartel de Amaralina, em Salvador, Bahia, uma cerimônia cívico-religiosa para os públicos militar e civil religiosos de candomblé, umbanda e demais religiões afro-brasileiras.

A solenidade reuniu sacerdotes e sacerdotisas dos terreiros, roças, centros, axés etc, da capital baiana e adjacências. Também estavam presentes autoridades civis e militares fiéis ou simpatizantes das aludidas religiões.


Com a finalidade de exercitar a fraternidade e o espírito de união e respeito entre diferentes expressões de fé foram também convidados representantes de outros credos e filosofias, a exemplo de padres (católicos), pastores (evangélicos), sheik (islâmico), rabino (judeu), conferencista (espírita) e monja (budista).


A atividade foi iniciada com a apresentação da Banda de Música da Aeronáutica, quando todos os presentes cantaram o Hino Nacional Brasileiro. Logo em seguida deu-se a apresentação dos representantes de outros credos e filosofias, os quais foram recepcionados por um sacerdote do povo de axé. Continuando o evento, apresentou-se a peça teatral "Depois do Navio Negreiro", encenada pelo Grupo de Teatro da Escola Municipal Maria Dolores, localizada no bairro Beiru em Salvador. Houve ainda, a apresentação do Coral Ecumênico da Bahia, que cantou uma música católica, uma evangélica, uma judaica e uma de candomblé. Após o coral apresentou-se o Grupo de Teatro da Polícia Militar da Bahia, com várias apresentações temáticas.


Fechando com uma parte religiosa, sacerdotes e sacerdotisas, representantes das principais nações afro-brasileiras: nagô-keto, nagô-ijexá, congo-angola, jeje-mahin, cabôclo e umbandista. Cada líder religioso realizou cânticos em suas respectivas línguas litúrgicas e saudações às entidades religiosas (orixás, inquices, voduns, cabôclos e pretos-velhos).

Ao final, todos realizaram conjuntamente uma bênção e a entrega das lembranças da festa, dando início ao jantar de encerramento e confraternização.


É importante sinalizar que, até o ano de 2010, as religiões afro-indígena-brasileiras não gozavam das mesmas oportunidades que outras (católica, evangélica e espírita) de compor as atividades religiosas oficiais das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica). Tal fato só foi possível com a organização de um grupo de militares do Comando da 6ª Região Militar, denominado Neafro-EB, através do qual foi pleiteado junto ao escalão superior os mesmos direitos garantidos aos credos já mencionados.

As primeiras atividades religiosas afro-indígenas só foram realizadas no ano de 2011, no Exército Brasileiro, Força pioneira e, ainda, única, a abrir suas portas para religiões como Candomblé e Umbanda. Os militares da  Marinha e da Aeronáutica ainda encontram-se em processo de pleito em suas Forças, tentando suplantar as mesmas barreiras inconstitucionais transposta no Exército.


Por fim, faz-se necessário o entendimento de que nenhuma legislação infraconstituciuonal possui legitimidade para ir de encontro ao artigo 5º da CF 1988, que garante a plena liberdade de consciência, de fé e culto em todo o território brasileiro, portanto, a tendência será de que todas as barreiras que inviabilizam experiências similares a do Neafro do Exército, sejam derrubadas nas demais Forças.

Fernando Carneiro.

sábado, 4 de maio de 2013

O fantasma do poder evangélico - Escrito por Luiz Manfredini

Espaço Aberto - O fantasma do poder evangélico


Publicado em Quinta, 11 Abril 2013 20:25

Escrito por Luiz Manfredini

Observadores do atual cenário político brasileiro vêm percebendo, no imbróglio resultante da eleição do Deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a Presidência da Comissão de Direitos Humanos e de Minorias da Câmara Federal, algo mais do que as posições racistas e homofóbicas em si mesmas do parlamentar, que é pastor evangélico.

Trata-se, como escreveu o jornalista Jânio de Freitas em sua coluna na “Folha de S. Paulo”. do “primeiro embate relevante em que os evangélicos se põem como um novo bloco orgânico, ideologicamente bem definido e poderoso”.

Segundo o pastor Ricardo Gondim, líder da Igreja Betesda, mestre em teologia pela Universidade Metodista e que se considera um dissidente do fundamentalismo evangélico, o movimento neopentecostal – o que mais cresce no Brasil – “se expande com um projeto de poder e imposição de valores” com o objetivo de ser maioria e “cada vez mais definir o rumo das eleições e, quem sabe, escolher o presidente da República”. Para Gondim, “seria a talebanização do Brasil”.

Jânio de Freitas vai no mesmo sentido quando afirma, em seu artigo, que “nenhum segmento político está em mais condições de crescer, nas eleições do ano próximo para o Congresso, do que os evangélicos”. É o caminho para uma república teocrática, avessa à tolerância religiosa dos brasileiros, e inusitada ameaça à laicidade do Estado.

Atual porta-voz desse fundamentalismo, o deputado Marco Feliciano torna-se cada vez mais agressivo, a despeito das manifestações que não cessam contra sua permanência à frente da Comissão de Direito Humanos. É claro que boa parte dessa postura alimenta objetivos eleitorais. O próprio partido a que pertence, o Partido Social-Cristão (PSC) prevê que, ao radicalizar o discurso, Feliciano poderá triplicar os 211 mil votos que obteve em 2010.

O vertiginoso crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil, que Ricardo Gondim considera “filho direto do fundamentalismo norte-americano”, é fenômeno óbvio e certamente objeto da atenção de estudiosos. Beneficiadas por uma legislação que os cumula com benesses várias, particularmente a isenção de impostos, vicejam no vácuo deixado pela igreja católica, de há muito órfã da Teologia da Libertação (que reunia os pobres, lhes conferia consciência e os instava a lutar por direitos coletivos) e em meio a uma sociedade crescentemente individualista que se apraz com um tipo de igreja de resultados, voltada à solução de situações concretas, migrando de uma para outra conforme sua conveniência. E nesse universo, utilizando à larga as modernidades midiáticas, destilam sua concepção fundamentalista, atrasada, preconceituosa, sepultando qualquer traço de racionalidade.

Não é intenção deste exíguo artigo examinar as origens, a natureza e o papel dessas igrejas e da religiosidade com a qual operam no campo da construção ideológica no mundo contemporâneo, mas apenas refletir, ainda que com muita brevidade, sobretudo a respeito das articulações desses movimentos em direção ao poder político. Dos púlpitos ao Congresso Nacional, conformando bancadas cada vez mais numerosas e influentes, essas correntes evangélicas alimentam o bloco da direita e com ele marcham no sentido de bloquear qualquer iniciativa minimamente progressista, parta de onde partir.

Há mesmo, repetindo o pastor dissidente Ricardo Gondim, “um projeto de poder e imposição de valores”. E com força crescente. Cada vez mais agressivo, o deputado Marco Feliciano já fala em mobilizar milhões. Em seus cálculos, 50 milhões. "Se é para gritar, tem um povo que sabe o que é grito. [...] Nós (evangélicos) sabemos qual é o poder da nossa fé”, brada, dizendo-se perseguido pelas manifestações contra sua manutenção na Presidência da Comissão de Direitos Humanos. Ele força a visão de que está em curso uma guerra contra os evangélicos, uma guerra – é claro – movida pelo Satanás, pretendendo com isso levantar milhões em defesa da fé supostamente ameaçada.

A própria comissão foi acusada de vínculos com o demônio, ao menos até Marco Feliciano, “um pastor cheio de espírito santo”, como ele próprio se definiu, aportar na Presidência. Pura agitação política, o disparate provocou protesto até da deputada Antônia Lúcia, do PSC acreano, também evangélica e vice-presidente da comissão. "Em respeito à minha própria pessoa, ao meu trabalho como parlamentar, eu não aceito uma declaração dessas. Eu acho que nós temos que separar igreja de Parlamento", disse a parlamentar.

Mas o fundamentalismo, irracional que é, não se detém. Feliciano, que considera que o Brasil vive “uma ditadura gay”. Ao defender-se numa ação protocolada no Superior Tribunal Federal, que o acusa de discriminação sexual e racial, Feliciano negou der homofóbico e racista, mas confirmou, com base na bíblia, sua visão de que sobre os povos africanos recai uma maldição divina proferida pelo personagem Noé. Interpretações como essas já serviram de base para manifestações racistas no Brasil e nos Estados Unidos no século 19.

E assim vão as coisas, com notícias diárias sobre esse embate. Os protestos são generalizados, tanto nas redes sociais, quanto no próprio Congresso. Dias piores virão. No Facebook, uma mensagem de apoio a Feliciano mereceu 1.716 compartilhamentos, sendo curtidas por mais de 500. As forças progressistas devem se preparar uma dura luta pela hegemonia, ao menos pela neutralização dessa avalanche de conservadorismo.


* Jornalista e escritor em Curitiba, representa no Paraná a Fundação Maurício Grabois e é autor de “As moças de Minas”, “Memória de Neblina”, “Sonhos, utopias e armas” e “Vidas, veredas: paixão”.



Sugerido por Dulce Leda Montenegro