Comumente se ouve a afirmação de que o Brasil (um Estado democrático de direito) configura-se como um “Estado laico”. A partir dessa afirmação duas questões poderiam ser elaboradas: O que significa e determina um Estado laico? E, no Estado Brasileiro pode-se realmente afirmar sua laicidade na prática?
A laicidade jurídica de um Estado Nacional refere-se a sua neutralidade, indiferença e independência em matéria religiosa, não adotando religião oficial, mas zelando pela plena liberdade de crenças e cultos. O Estado não-confessional deveria tratar todas as crenças com igualdade, assegurando ainda, a coexistência pacífica entre as diversas religiões respeitando a liberdade destas exercerem seus cultos, assim como, dos grupos que se afirmarem sem religião ou ateus. É bom ressaltar que o Estado laico não pode ser confundido com o “Estado ateísta”, pois este, não admite nenhum tipo de liberdade de crença ou culto.
O Brasil juridicamente torna-se um “Estado laico”, com o advento da República e a edição do Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que decretava a separação entre igreja (instituições religiosas) e o Estado, ratificado pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891 em seu § 2º, do Art. 11: “Art. 11 – É vedado aos Estados, como à União: § 2º - Estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (BRASIL, 1891).
De forma suprema, duas coisas atestam a laicidade de um Estado: Primeiramente a prescrição em sua Lei Magna ou Lei Maior, de princípios que estabeleçam a separação entre o Estado e as religiões. Em segundo lugar, a garantia da plena liberdade de crença e de culto. No caso brasileiro, atualmente, tais princípios deverão ser identificados na Constituição Federal de 1988 (CF 88) e em algumas legislações infraconstitucionais2 .
Entretanto, não bastam os princípios da laicidade do Estado estarem prescritos na Constituição e demais legislações infraconstitucionais, fazendo-se necessário, que o Estado através dos poderes constituídos zelem pela fiscalização e cumprimento de tais determinações constitucionais na prática, tratando da plena liberdade de crença e culto, sem privilegiar, nem cercear os direitos de nenhuma outra religião, filosofia ou de grupos não-religiosos.
Começando a investigar a CF 88 verifica-se no inciso VI, do Art. 5º, que trata dos Direitos Individuais e Coletivos, dentro Dos Direitos e Garantias Fundamentais, os quais são “cláusulas pétreas” (cláusulas que não podem ser modificadas), a seguinte prescrição: “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e liturgia”. Ainda, complementando a intenção de promoção da garantia da liberdade religiosa, cita-se o inciso VII, do supracitado artigo que expressa o seguinte: “VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. (BRASIL, 1988)
Os incisos VI e VII, do artigo 5º da CF 88, acima citados, retratam a intenção do legislador constituinte em garantir a livre expressão da pluralidade religiosa no Brasil ao tratar a questão religiosa de forma genérica e multiforme, ao tempo que “não” emite vinculação oficial do Estado brasileiro com nenhuma religião específica.
A ressalva a se fazer cai sobre a aplicação prática dos aludidos incisos, que em muitos casos, nem a inviolabilidade à liberdade de crença e de culto (Inc. VI), assim como, a prestação de assistência religiosa da qual alude o inciso VII, são respeitadas, uma vez que se deveria prestar assistência religiosa a civis e militares em regime coletivo de internato de forma que a referida assistência fosse prestada a tantos credos quanto àqueles solicitados pelos internos ou existentes no ambiente coletivo, no caso, uma pluralidade.
Na grande maioria nos quartéis (Forças Armadas e Polícias Militares), por exemplo, tal prescrição não se cumpre, uma vez que só é permitido por legislações internas, assistência religiosa a católicos, evangélicos e espíritas, só havendo concurso para capelão militar para os dois primeiros credos e, ainda, não sendo autorizadas reuniões de outros segmentos religiosos (candomblecistas, umbandistas, budistas etc).
Com tal assistência deficitária, no mínimo os fiéis das demais religiões, como Candomblé, Umbanda, Budismo, Islamismo etc, são tolhidos do direito constitucional, não podendo ser desconsiderada a possibilidade de pessoas de religiões outras serem obrigadas a participarem de cultos religiosos diferentes dos seus.
Outro artigo constitucional que cabe análise é o Art. 19, especificamente em seu inciso I:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988,
grifo nosso)
Neste artigo o legislador constitucional teve a intenção de impor limites ao Estado com a finalidade de garantir o livre exercício da pluralidade religiosa dando a interpretação de que subsidiar, financiar, atrapalhar, ou então,
fazer acordo (aliança) com representações ou instituições religiosas quaisquer, contraria a ideia de Estado laico, ao tempo que veda todo tipo de relação entre Estado e igreja (religiões).
Entretanto, a expressão “[...], ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”, termina abrindo uma brecha para eventuais precedentes que possam a vir a beneficiar as religiões ou instituições religiosas com maior poder (influência) na sociedade brasileira. Como exemplo pode-se citar o “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé”, relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado no ano de 2008, e promulgado através do Decreto 7.107 de 11 de fevereiro de 2010, que gerou inúmeras acusações por parte de juristas e intelectuais, de inconstitucionalidade, justamente por ferir o Art. 19, da CF 88.
Algumas posições que contestam o Brasil como Estado Laico criticam a existência no preâmbulo3 da CF 88 a expressão “[...] promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (BRASIL, 1988)
Quanto à questão do preâmbulo constitucional atual, já houve Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)4 sobre a omissão do termo que evocaria a proteção de Deus na Constituição do Estado do Acre, o que levou o Superior Tribunal Federal (STF) a manifestar-se afirmando que o preâmbulo não teria força normativa, não se situando no âmbito do direito constitucional, possuindo configuração apenas político-ideológica do legislador constituinte5 , dessa forma, não teria relevância jurídica e nem seria norma de observação obrigatória. (ALEXANDRINO, 2010).
Mesmo frente à aludida interpretação do STF, não se pode negar a força simbólica que exprime a expressão “sob a proteção de Deus” no preâmbulo constitucional brasileiro associando a Carta Maior aos valores ditos cristão, pois neste caso Deus representa o Deus de cunho judaico-cristão, devendo ter sido imposto ao texto constitucional por força política das bancadas ligadas às instituições religiosas cristãs, perfazendo-se assim, procedentes as críticas sobre o preâmbulo constitucional.
Outra face da configuração laica de um Estado, além de seu ordenamento jurídico seria o caráter laico ou religioso da sociedade. No caso do Brasil é inegável o caráter religioso de sua população de maioria cristã, de acordo com os dados do último censo de 2000, quando cerca de aproximadamente 90 por cento da população foi identificada como religiosa cristã (católico e protestante/evangélico).
Sem desconsiderar o processo de secularização que sofre a população brasileira, não se pode negar a influência dos valores e da moral religiosa, principalmente a cristã, no pensamento e no comportamento das pessoas e por consequência, nas representações políticas do poder na elaboração das leis que regem o Brasil.
Temas diversos tornam-se polêmicos ao serem colocados em discussão com a finalidade de reelaboração da legislação como por exemplo: A descriminalização do aborto; a descriminalização da eutanásia; a equiparação de direitos de casais homossexuais ou homoafetivos aos direitos dos casais heterossexuais; a liberação de drogas ilícitas como a maconha; e os limites da liberdade de expressão6 quando esta fere outros direitos fundamentais da pessoa humana em matéria religiosa.
Quando se analisa essa questão da laicidade do Estado duas coisas têm que ser levadas em consideração. A primeira é a mentalidade cultural ou nível de compreensão de um povo, a qual é formada por séculos de construções ideológicas (linguísticas, religiosas, comportamentais, jurídicas etc) e que não se altera com rapidez e facilidade, pois são formadas num longo processo. A segunda é que somente a elaboração e promulgação das leis, não são suficientes para alterar o pensamento e o comportamento de um povo, sendo necessário um processo que envolve educação, tempo e envolvimento (diálogo) das diversas parcelas da sociedade.
Portando, considerando-se a reflexão feita até aqui pode-se dizer que o Brasil, em termos jurídicos é um país laico, fazendo-se algumas ressalvas ao ordenamento jurídico, a exemplo do ensino religioso, de matrícula facultativa, nas instituições públicas de ensino fundamental, instituído pelo § 1º, do Art. 210, da CF 88 e regulamentado pelo Art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)7 , por ser considerado, segundo a lei, parte integrante da formação básica do cidadão, sendo que sobre essa questão pode ser desenvolvida uma complexa discussão que não será possível aqui. (BRASIL, 1996)
Concluindo, por outro lado, a sociedade brasileira é majoritariamente religiosa cristã, estabelecendo assim, sérias dificuldades para se estabelecer uma postura política laica, criando assim, entraves nas propostas de avanços na legislação brasileira. Inúmeros são casos de notória influência dos discursos caracterizados como religiosos sobre questões consideradas seculares pelo Estado, a exemplo do aborto, das pesquisas com células tronco, da união civil entre homossexuais ou homoafetivos, do ensino religioso nas escolas, entre tantos. A superação dessas barreiras, que não deixam de ser temas complexos e polêmicos, dificilmente ocorrerá sem intenso diálogo e incansável negociação política com os grupos conflitantes de tais causas. Diversos são os interesses que alimentam as posturas ideológico-religiosas dos grupos conflitantes, transcendendo o mundo religioso para os espaços econômicos e políticos ligados ao poder. Uma sociedade laica não se constitui por imposição de leis, mas através de um processo de rupturas com os pensamentos e a moralidade estabelecidos, tentando-se uma reconstrução ou reelaboração da vida em sociedade e da participação na vida política do país.
NOTAS
1
Laicidade origina-se de laico que significa leigo, que por sua vez indica aquilo que não é clérigo; estranho ou alheio a um assunto; secular. Laicismo refere-se ao estado ou caráter de laico.(FERREIRA, 2001). Aqui referindo-se ao estado não religioso ou confessional do país.
2
Infraconstitucionais são consideradas todas as demais legislações que não seja à Constituição Federal, uma vez que esta, num Estado constitucionalista é a Lei Maior, Lei Fundamental e Lei Suprema de um Estado, sendo as demais legislações inferiores hierarquicamente.
3
Preâmbulo equivale a prefácio; preliminar (FERREIRA, 2001), no caso da Constituição Federal de 1988, não constitui sua parte dogmática (corpo principal ou permanente de caráter e força jurídica).
4
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um recurso jurídico que visa averiguar a constitucionalidade (se estar de acordo com a CF) de lei ou ato normativo. (ALEXANDRINO, 2010)
5
Legislador constituinte é aquele que atua na elaboração de normas contidas na Constituição Federal, diferenciando-se do legislador que elabora as demais normas. (ALEXANDRINO, 2010)
6 A
Liberdade de expressão como outras não é absoluta, pois torna-se limitada diante do confronto com outros direitos. Quando passa a configurar em ilicitudes penais, ou seja, quando implica em crimes prescritos por lei, por exemplo, o direito da liberdade de expressão não consagra o direito à incitação ao racismo, assim, um direito individual não pode implicar num delito, como no exemplo, os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica possuem prevalência sobre os demais. (ALEXANDRINO, 2010)
7 Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente.
Direito administrativo descomplicado. 5ª ed. São Paulo: Editora Método, 2010, 1053p.
BRASIL. Constituição (1981).
Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil. Disponibilizado em:
Acesso em 24 jun. 2011.
BRASIL. Decreto-lei nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010. Promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 jan. 2010. Disponível em < http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=6&data=12/02/2010>. Acesso em 25 jun. 2011.
BRASIL. Decreto do executivo nº 119-A, de 07 de janeiro de 1890. Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e dá outras providências. PUB CLBR 1890 V001 PÁG 000010 COL 1 Coleção de Leis do Brasil. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso em: 25 jun. 2011.
BRASIL. Lei 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em < http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=23/12/1996>. Acesso em 25 jun. 2011.
FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Mini Aurélio: o minidicionário da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
JANCZESKI, Célio Armando et al. Org. Constituição Federal comentada. Curitiba: Juruá, 2010, 768p.