segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Vale mais o alfabeto do que o caráter?

No Brasil fala-se muito em corrupção política construindo-se uma ideia equivocada de que a corrupção limita-se ao meio político-partidário. O maior e mais eficaz meio de divulgação e fiscalização dos episódios de corrupção seria a grande mídia ou mídia de massa. Grande é a legitimidade auto propagada pelos meios de comunicação a si próprios, através de discursos adjetivados de termos como “imparcialidade”, “verdade”, “isenção”, entre outros que levam aos mesmos significados.

Existe uma tendência a crer que corrupção venha a existir em qualquer ação, grupo ou relação humana. Assim, tanto na política, como na religião, como na educação, como na mídia, o ser humano tende a realizar ações que venham a destruir ou alterar a essência das coisas, sendo esta a conotação filosófica para corrupção.

É justamente essa última, a mídia, que parece desconsiderar a possibilidade dela própria, de agir de forma corrupta, pois ela se auto declara o arauto da liberdade de expressão, da verdade e consequentemente a face imaculada do processo democrático, acima de qualquer suspeita. Tal posicionamento parece ser no mínimo ingênuo para não falar presunçoso. Há de se pensar que a mídia também é corrupta no momento que perde o rótulo da imparcialidade, e ainda, se reveste de preconceitos contra as vítimas das mazelas sociais.

O primeiro rótulo a ser questionado chama-se imparcialidade, uma vez que não causa nenhum susto afirmar que a grande mídia no Brasil, sendo propriedade de um punhado de famílias poderosas, apresenta-se totalmente tendenciosa politicamente, com forte viés de direita e ideologicamente elitista, contaminada com toda uma carga de preconceitos emanados das classes econômica e politicamente dominantes.

Um real exemplo de visão preconceituosa combinada com estratégia de manipulação emerge com os ataques feitos por algumas revistas, jornais, rádios, etc, contra o humorista Tiririca que candidatou-se a deputado federal pelo Estado de São Paulo. Revistas semanais de tendências de direita, têm veiculado reportagens em que questionam o grau de instrução do candidato Tiririca, uma vez que candidatos analfabetos são inelegíveis por lei. Tão grande a importância dada a esta possibilidade que o humorista virou reportagem de capa da revista Época.

Interessante, para não dizer preocupante é o fato dos nomes dos políticos com candidaturas barradas pela Lei da Ficha Limpa, também não figurarem em reportagens de capa das principais revistas semanais. Por que a mídia não mostra os nomes das dezenas de fichas sujas que estão se candidatando? Por que não mostra seus rostos, suas acusações, seus processos? Por que a mídia pegou para bode expiatório justamente o Tiririca? Seria pelo fato dele provavelmente não saber ler ou escrever? Ou seria puro preconceito em relação aos iletrados, vítimas de letrados corruptos que roubaram e roubam o dinheiro destinado a escolas, creches, casas populares, merenda escolar, transporte escolar, etc? Por que a mídia insensível dificulta mais a vida de quem vem de baixo, que não teve provavelmente oportunidade de estudar em virtude da corrupção de outrora?

As mentes que vomitam contra Tiririca seriam as mesmas que continuam vomitando contra o nordestino sem nível superior que chegou a presidência e por isso, foi questionado se teria condições de governar um país como o Brasil?

O que seria mais importante para a mídia mostrar nas capas das revistas de maior venda, o caráter ou o grau de instrução de um candidato? Seria o baixo grau de instrução um fator de corruptibilidade? Se assim for, por que os intelectuais, letrados, doutores, escritores, acadêmicos, etc, parecem tão facilmente vulneráveis a sucumbirem às propostas de corrupção?

Vale mais o alfabeto do que a honestidade e o caráter?

É essencial ser alfabetizado para não se corromper? Então por que a grande maioria dos corruptos de carteirinha, que roubam de forma desavergonhada o povo, são em grande maioria intelectuais, muitos deles com com ampla formação acadêmica?

Em fim, defender enfaticamente o papel dos meios de comunicação na construção e consolidação do processo democrático, desde o acompanhamento, à fiscalização, à denúncia e à conscientização da população é essencial e salutar, no entanto, desde que a atuação desta mídia esteja também sujeita a uma análise crítica e à críticas quando assim for entendido, pois ninguém e nada está acima de qualquer suspeita e todos devem fiscalizar-se uns aos outros.

Fernando Carneiro

sábado, 25 de setembro de 2010

Uma forma de violência quase imperceptível

Pierre Bourdieu criou o conceito de “violência simbólica” caracterizando-o pela elaboração de crenças e ideologias que induzem os indivíduos e grupos a posicionarem-se no espaço social de acordo com os interesses do discurso dominante, servindo para a manutenção, reprodução e legitimação das relações de controle e dominação. Tal violência sendo executada, inclusive, através dos discursos político e religioso.

O discurso religioso tende a produzir e reproduzir violências simbólicas, como a homofobia, o racismo, o machismo e a intolerância religiosa.

Como o mais recente exemplo de violência simbólica religiosa tem-se a intenção de um pastor dos EUA de queimar o Alcorão (livro sagrado do Islã) em suposto protesto ao ataque terrorista de 11 de setembro.

Já o discurso político, proferido pelos políticos profissionais, jornalistas, acadêmicos, escritores, etc., utiliza-se dos meios de comunicação de massa e dos discursos públicos, visando promover valores político-ideológicos de interesses diversos.

Como exemplos de violência simbólica política, tem-se os discursos proferidos na propaganda obrigatória eleitoral e as vergonhosas tentativas de explicação dos casos de denúncias de corrupção envolvendo a classe política, a classe empresarial e outros segmentos da sociedade.

Visando contribuir para a reflexão sobre o tema, apresenta-se o pensamento de Van Dick, quando afirma que o abuso de poder, através da manipulação do discurso, seja político ou religioso, tende a estabelecer uma relação entre dominadores e dominados, podendo levar à manipulação das idéias e, indiretamente, a uma manipulação das ações das pessoas, onde estas seriam ao mesmo tempo cúmplices e vítimas de tais violências.

Pr. Fernando Carneiro

Eleições Brasil 2010

No próximo dia 03 de outubro, o Brasil irá às urnas para escolher seus “representantes políticos” para o mandato de 2011 a 2014. Diante de tal evento democrático surge um questionamento: Até que ponto esses pretensos “representantes do povo” utilizam-se do poder a eles delegado, para agirem politicamente em benefício dos interesses e das necessidades da população brasileira, especialmente dos mais pobres?

Hannah Arendt, uma filósofa judia, alerta que o agente político (aquele que executa a ação política) teria a obrigação de agir em função do público (coletividade) e não do privado (particular), no entanto, raríssimos são tais exemplos na política profissional brasileira, na verdade, o que se constata é o inverso desta tendência, ou seja, a maioria dos agentes públicos utilizam-se do poder a ele(a)s delegado para garantir seus próprios interesses particulares, em detrimento dos interesses e necessidades da coletividade, que através do voto, os coloca no poder.

Em função dos escândalos de corrupção e da propaganda eleitoral, o povo boquiaberto e estático assiste aos mais hipócritas e mentirosos discursos vomitados pelos políticos profissionais. Van Dijk, autor do livro “Discurso e Poder”, denuncia como abuso de poder, o discurso político que tende a legitimar as formas de dominação que resultam em desigualdade e injustiça sociais, sendo tal discurso uma forma de controle sobre as mentes e consequentemente sobre as ações da maioria da população.

Concluindo, segue o apelo para que todos os brasileiro(a)s venham a utilizar o voto (uma ação política) de forma consciente, observando a realidade ao seu redor, como parâmetro de avaliação daquele(a)s a serem eleitos para os próximos 4 anos de governo, além de procurar escolher candidatos que não estejam envolvidos em corrupção. Voto é poder. Votar, fiscalizar e cobrar do agente político são ações complementares na construção de uma democracia. O voto é a principal arma do cidadão contra a corrupção.

Pr. Fernando Carneiro
Texto Editorial do boletim da Igreja Evangélica Antioquia (IEA), de 26 de setembro de 2010
Salvador-BA

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Religiões de matriz africana e indígena na caserna

          Ainda hoje, em muitos segmentos da sociedade, o desconhecimento e a discriminação acerca das religiões de matriz africana e indígena são responsáveis pela resistência, ainda muito forte, à atividades de culto ou de estudo de tais expressões religiosas em diversos espaços ou grupos sociais.

          Todo grupo social apresenta-se como um extrato da sociedade, em todos os seus aspectos: cultural, religioso, ideológico, político, social, etc., sendo assim, carrega consigo as construções dominantes da mentalidade popular. No tocante à religião, tal característica se faz presente na reprodução de um discurso de legitimidade, veracidade e supremacia de alguns segmentos religiosos em detrimento de outros, sendo que a estes últimos são imputados títulos como ilegítimos, falsos e inferiores.

          A primeira consequência negativa desse discurso de hierarquização do pensamento e da experiência religiosa é a negação de direitos fundamentais como a liberdade de crença, de expressão e de culto, a algumas expressões religiosas existentes no Brasil, contribuindo assim, para a solidificação de tais visões equivocadas que vêm vitimar, principalmente, as religiões minoritárias. No Brasil, as religiões que mais sofrem as supracitadas consequências negativas são as religiões de matriz africana e indígena, a exemplo dos Candomblés, da Umbanda, do Santo Daime, etc. Alguns estudiosos, inclusive, defendem que aquilo que pode ser identificado como discriminação religiosa está intrinsecamente associado à ideia de discriminação racial ou étnica.

          Por força da iniciativa e organização de alguns grupos de fiéis das citadas religioes vitimadas, assim como, de estudiosos, religiosos, intelectuais, políticos, agentes públicos, instituições e do próprio povo, alguns avanços e conquistas têm sido alcançados em diversos segmentos da sociedade, inclusive nos mais tradicionais e conservadores, fruto de um diálogo mais aberto e diplomático, junto a tais segmentos, impulsionado pela mentalidade crescente que vem favorecendo o entendimento e o reconhecimento da diversidade e da pluralidade da cultura brasileira, desde o seu nascimento, com importantes contribuições culturais das sociedades européias, africanas e indígenas brasileiras, na formação da cultura e da religiosidade da nação brasileira.

          Um grande exemplo dessas conquistas referentes às expressões religiosas minoritárias foi a criação e atuação do Núcleo de Religiões Afro-brasileiras da Polícia Militar da Bahia (NAFRO-PM-BA). Este núcleo pensado e nascido dentro de uma institução do goverso estadual, a partir do diálogo com comando e demais integrantes da corporação representa hoje uma quebra de paradigmas, enaltecendo a vontade institucional de promoção do respeito à diversidade religiosa da população brasileira e ao mesmo tempo, demosntranto o compromisso com a garantia dos direitos fundamentais preconizados na Constituição Brasileira de 1988.

          A partir do NAFRO-PM-BA verificou-se a possibilidade de diálogo dentro de outras instituições consideradas mais tradicionais e conservadoras, a exemplo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), com a finalidade de alcançar o mesmo entendimento ocorrido na Polícia Militar da Bahia, referente a abrangência das atividades de assistência religiosa ao público das religiões afro-brasileiras e indígenas. Os resultados dos primeiros diálogos apresentaram-se extremamente positivos demonstrando uma postura de acolhimento à proposta de garantir assistência religiosa ao público supracitado, assim como, de um ambiente para o estudo e a reflexão.

         O mais novo exemplo de resultado positivo e pioneiro nessa perspectiva religiosa vem do Exército Brasileiro em Salvador, que após um diálogo entre militares e servidores civis candomblecistas, umbandistas e estudiosos do fenômeno religioso, com o escalão de comando daquela Força Armada, por intermédio da Capelania Militar, conseguiu-se a autorização de implementação de um grupo de estudos das religiões de matriz africana e indígena no âmbito da 6ª Região Militar (estados da Bahia e Sergipe), encontrando-se ainda em formação, garantindo assim, os mesmos direitos de reunião, estudo e culto já usufruídos pelos públicos católico, evangélico e espírita, no ambiente da caserna. Tal formalização da extensão das atividades religiosas ao novo público foi considerado um avanço na conscientização a cerca do respeito pelas diferenças culturais e religiosas da população brasileira.

         Concluindo este raciocício, alguns fatos mostram que tem-se avançado de forma significativa em prol do respeito pelas diferenças culturais e principalmente religiosas no Brasil. Faz-se importante destacar que a expressão religiosa junto com a língua são consideradas fundamentais para a manutenção das identidades culturais e da memória dos povos, por esse motivo deve-se construir um esforço conjunto pelo diálogo na sociedade visando o avanço de tais políticas que propiciem os mesmos direitos a todos os grupos religiosos de manifestarem seu pensamento, da mesma forma, que as pessoas que se declararem sem religião, a-religiosas ou atéias, devem também, ter suas opções respeitadas. Tem-se consciência que ainda existe um longo caminho a ser conquistado, mas pouco a pouco os obstáculos vão sendo vencidos.

Fernando Carneiro

domingo, 19 de setembro de 2010

O racismo está nas raizes da intolerância religiosa no Brasil ?

                  Sobre o título desta indagação, o pensamento de Kabengele Munanga, (2006, p. 175), quando afirma: “A discriminação ‘cultural’ vem a reboque da física, pois os racistas acham que ‘tudo que vem de negro, de preto’ ou é inferior ou maléfico (religião, ritmos, hábitos, etc.)”, vem reforçar o argumento de que o racismo encontra-se nas raízes da intolerância religiosa, na medida em que se compreende que as religiões de matriz africana constituem-se na principal expressão da identidade negro-africana.

Nessa construção de Munanga, referindo-se ao preconceito racial no Brasil, defende-se que a discriminação racial é direcionada fundamentalmente às características físicas do não branco, especificamente, da população negra. Neste mesmo raciocínio, afirma-se que tal preconceito transcende aos caracteres físicos da pessoa negra (cor da pele, formato do nariz, lábios, tipo de cabelo, etc.), abrangendo em particular, as culturas negras ou africanas em toda a sua pluralidade de expressão.

Partindo-se da premissa que a expressão religiosa1 é a maior representação da cultura e identidade de um povo, exclui-se assim, quaisquer dificuldades de entendimento, para se chegar à conclusão que a intolerância religiosa, em relação às religiões de matriz africana no Brasil, por parte da sociedade brasileira de maioria cristã, apresenta cunho ideológico racista, com suas raízes na sociedade escravocrata estabelecida desde o século XVI e, que permanece no inconsciente coletivo do povo brasileiro, até os dias de hoje.

               Historicamente, no Brasil, as religiões afro-brasileiras, desde o princípio, foram associadas ao mal e, peculiarmente, consideradas como culto ao demônio, feitiçaria, magia maléfica, idolatria, etc. Tais conceitos de sentidos pejorativos tinham sua razão de ser, simplesmente, porque eram aplicados às expressões religiosas dos negros escravizados, portanto, de acordo com a ideologia racista, inferiores ou maléficas, uma vez que, havia a necessidade de reprodução e manutenção das relações sociais de poder, que legitimava a sociedade racista e escravocrata daquele período, como adverte Junia de Vilhena:

“Designar aos negros atributos demoníacos possibilitou que a escravidão fosse tomada como forma de redenção já que se fossem vítimas ou agentes de Satã os africanos não poderiam ser abandonados sem a tentativa de livrá-los da influência do maligno.” (VILHENA, 2007, p. 12)

Concluindo, hoje a sociedade brasileira não é mais escravocrata no sentido literal da palavra, entretanto, ainda mantém uma estrutura racista. Tal afirmação é comprovada, segundo Kabenguele Munanga, pelos dados estatísticos quando apontam que a profunda desigualdade de renda caminha lado a lado com a desigualdade racial no Brasil (2006, p.172,178).

Notas
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1 Manifestações de ordem religiosa que têm seu veículo na simbologia da linguagem, na literatura, na arte, em rituais variadíssimos, nos corpos doutrinários e em modelos de vida.

Referências

MUNANGA, K, K. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil hoje. Coleção Para Entender, São Paulo: Global, 2006.

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Uma breve leitura sobre a Umbanda

A Umbanda é considerada uma religião brasileira, formada no início do século XX, com fortes influências doutrinárias de religiões preexistentes no Brasil, como o espiritismo kardecista, o catolicismo, as religiões ameríndias e de matriz africana, predominantemente, banto1. Ficou popularmente conhecida como Macumba, que segundo Yeda Pessoa é uma palavra de origem banto:

MACUMBA (banto) 1. (ºPS) –s.f. denominação genérica para as manifestações religiosas afro-brasileiras de base congo-angola, que incorporaram orientações ameríndias, católicas e espíritas, com predominância do culto ao caboc(l)o e preto-velho. Prevaleciam no Rio de Janeiro e, ainda hoje, nas zonas rurais. Cf. candomblé, umbanda. Kik./Kimb. makuba, reza, invocação.
2. (ºBR) –s.f. sessão de feitiçaria, de magia-negra; despacho. Ver quimbanda. Cf. macumbe(i)ro.
3. (ºBR) –s.f. denominação popular das manifestações religiosas afro-brasileiras no Rio de Janeiro e em zonas rurais de várias regiões brasileiras. (2005, p. 270, grifo do autor)


Ratificando a influência de matriz africana banto1, na Umbanda, Vagner Silva (2007b, p. 34) defende que: “As fontes afro-brasileiras da umbanda foram sobretudo as práticas bantas, nas quais o termo já aparecia”. Uma das características fenomenológicas da Umbanda, considerada de origem banto, é a associação das entidades espirituais às figuras cotidianas populares, ainda, na leitura de Vagner Silva:

Na umbanda preservou-se uma característica das religiões de origem banto, a de ser um sistema aberto à incorporação de influências locais, como o culto aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos católicos e a outras entidades de origem popular brasileira (GONÇALVES, 2007b, p.34, grifo nosso)

A Umbanda pode ser concebida como uma forma de expressão religiosa fortemente sincrética. Pode ser considerada tanto brasileira como afro-brasileira, de acordo com o pensamento de Solange Vaini, quando afirma que:

Podemos definir a Umbanda como uma religião brasileira, influenciada pelo catolicismo, pelo espiritismo de Kardec, pela cultura ameríndia e africana. Como possui fortes elementos da última, facilmente identificáveis, é considerada também como uma religião afro-brasileira, que pode designar uma série de práticas, com raiz nas religiões oriundas dos negros africanos, que para cá foram trazidos como escravos. (VAINI, 2006, p. 1, grifo nosso)

A Umbanda, também pode ser considerada uma religião universal, ou seja, uma religião que se oferece para todos, pois, segundo Reginaldo Prandi (2004, p. 51), teve origem da migração dos candomblés banto e de caboclo, da Bahia para a região sudeste, incorporando o espiritismo kardecista, se disseminado por todo o Brasil e, ainda, pelos países do cone sul.

Conclui-se então, que a Umbanda, constitui-se numa religião formada no Brasil, particularmente no sudeste do país, com influências sincréticas do catolicismo, candomblé banto, candomblé de caboclo, de religiões ameríndias e do espiritismo kardecista. Numa análise fenomenológica, a Umbanda é uma religião de transe (incorporação/possessão), crendo na reencarnação e evolução espiritual, pregando a idéia da caridade. Concebe um Deus criador, intermediado por guias, que são os espíritos dos mortos (desencarnados), sendo os dos mais conhecidos, o preto-velho e o caboclo, existindo ainda no panteão umbandista, os orixás, o jogo de búzios e os santos católicos (SILVA, 2007, p. 34).

Nota
________________________
1 Grupo lingüístico africano, subsaariano (abaixo do Deserto do Saara), composto de várias línguas; os povos banto, ficaram conhecidos genericamente no Brasil, como congo-angola.

Referências

PESSOA DE CASTRO, Yeda (2005) - Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora. 2005, 365 p.

PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 51-66, 2004.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Terreiros de Candomblé: como surgiram e se organizaram os locais de culto, com seus ritos, músicas, cantos e danças coletivas, a princípio só para negros. História Viva Grandes Religiões. Cultos Afros. Duetto Editorial: São Paulo, n. 6, p. 28-33, 2007.

VAINI, S. S. . Um olhar sobre a Umbanda: memoria e aprendizagem num terreiro de São Paulo. Espaço Plural (Unioeste), v. 14, p. 18-19, 2006.

A educação como meio de conscientização sobre o respeito à diferença

Através do engajamento político dos integrantes da sociedade brasileira, entre eles o movimento negro, que entendem a educação como a principal forma, não a única, de promover a conscientização pelo respeito e dignidade das diferenças étnico-culturais e, por consequência, das distintas religiões, lutou-se junto às classes políticas, em prol da promulgação de leis que viessem a regulamentar tais ações afirmativas.

Como exemplo, pode-se citar a Lei 10.639, de 09/01/03 (Altera Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências), na expectativa de valorização da história do povo negro e afrodescendente, assim como da contribuição da cultura africana na formação da cultura brasileira:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
(BRASIL, 2003, p.1)


Após implementação da Lei 10.639, acordou-se no meio popular, jurídico e legislativo, da necessidade de incluir, na mesma perspectiva de valorização étnico-cultural e religiosa, as sociedades indígenas brasileiras, reconhecendo-se suas contribuições para a cultura brasileira e conscientização nacional acerca da sua importância, promulgando-se então, a Lei 11.645, de 10 de março de 2008, em substituição e/o complementação à Lei 10.639:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
(BRASIL, 2008, p. 1)

As intenções das leis acima citadas, refletem o pensamento de Kabengele Munanda (2006, p. 11), sobre a diversidade da cultura brasileira, formada por diferentes culturas, sendo que, o povo brasileiro para conhecer sua verdadeira identidade cultural, em termos religiosos, artísticos, musicais, culinários, entre tantos outros aspectos, necessita conhecer a história e a cultura dos povos que formaram a cultura brasileira, defendendo que : “Aprender a conhecer sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro é aprender a conhecer a cultura de vários povos que aqui se encontram e contribuíram com suas bagagens e memórias na construção deste país e na produção da identidade brasileira” e, afirmando ainda:

De modo geral, o povo brasileiro é oriundo de quatro continentes: América, Europa, África, e Ásia. [...] É por isso que o Brasil, como país e como povo, oferece o maior exemplo de encontro de culturas e civilizações. [...] Por essa razão, aprender a conhecer o Brasil é aprender a conhecer a história e a cultura de cada um desses componentes para melhor captar sua contribuição na cultura e na história do país. (MUNANGA, 2006, p. 17).

Portanto, defende-se, que através do engajamento político dos integrantes da sociedade brasileira, que a educação representa a principal forma, não a única, de promover a conscientização pelo respeito e dignidade das diferenças étnico-culturais e, por consequência, das distintas religiões, para isso, vem-se lutando junto às classes políticas, em prol da promulgação de leis que venham regulamentar tais ações afirmativas.

Referências

BRASIL. Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 30 jul. 2009.

BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm>. Acesso em: 30 jul. 2009.

MUNANGA, K, K. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil hoje. Coleção Para Entender, São Paulo: Global, 2006.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Socialismo é uma Filosifia do Fracasso?

Comentário à mensagem transcrita abaixo, emitida no grupo de e-mail do Curso de Especialização em Política Estratégica (CEPE) da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra Delegacia Bahia (ADESGBA), em julho de 2010:

“Para nós que estamos estudando a cultura política brasileira e o caráter de nosso povo, seria bom que meditássemos sobre isso:
‘O COMUNISMO É CONTRA A ÍNDOLE DO BRASILEIRO’
O Socialismo/Comunismo é uma Filosofia do Fracasso, o Credo da Ignorância e o Evangelho da inveja.
Sua virtude inerente é a distribuição equitativa da miséria!”
Winston Churchill


"Uma reflexão sobre a descontextualizada afirmação: "O Socialismo/Comunismo é uma Filosofia do Fracasso, o Credo da Ignorância e o Evangelho da inveja."


Fernando Carneiro *


Numa sociedade globalizada como temos hoje, onde as culturas e as construções ideológicas realizam trocas e ajustes no sentido da integração multidoutrinal, adotar um pensamento monopolar sobre filosofias político-econômicas do passado, demonstrando um ortodoxismo preso à geopolíticas construídas nas décadas das Grandes Guerras, consideradas insuficientes para o entendimento da atual conjuntura nacional e internacional, chega a despertar preocupação, pois não se leva em consideração as transformações politico-econômicas que o mundo tem sofrido de forma acelerada e contínua.

O mundo mudou e muda constantemente e com ele a conjuntura internacional sofre adequações impostas pelas transformações econômicas, construindo novas políticas nas relações de poder entre as nações e as sociedades. China e Brasil são os mais claros exemplos dessa miscigenação político-ideológica, enquanto a União Européia e ou EUA, tentam fugir tardiamente do fundamentalismo político-filosófico abraçados como dogma, revendo suas posturas diante do novo contexto
mundial.

Quantos anos se passaram após Churchil? Quais as mudanças ocorreram no contexto mundial? Quantos muros cairam? Quantos países se desintegraram? Quantas economias emergiram? Quantas ideologias políticas se fundiram?

O Brasil de hoje é um país símbolo dessa nova conjuntura político-ideológica, livre do pensamento político-dogmático fundamentalista, seja de direita ou de esquerda.

Brasil, um país a ser pensado no seu tempo e no seu contexto.

Salvador, Bahia, agosto de 2010.



*Fernando Carneiro é Bacharel em Teologia e Licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira, secretário do Grupo Primo, diretor executivo do Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão (CEPESC), pastor da Igreja Evangélica Antioquia, membro do Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC) e pós-graduando em Política Estratégica, pela Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra – delegacia Bahia (ADESGBA).

domingo, 16 de maio de 2010

O Ser Humano como um Deus Suicida

O Ser Humano como um Deus Suicida

* Fernando Carneiro

O Cristianismo é uma religião fundamentada no verbo, na palavra, inicialmente oral e colocada posteriormente por escrito pois, segundo a teologia cristã, a “Palavra” do “Deus único”, o “Verbo”, se fez carne em Jesus de Nazaré, que mais tarde foi transformado no “Cristo”, o “Ungido”.

Jesus, o Cristo, segundo uma interpretação das escrituras sagradas dos cristãos, fez muito bom uso da palavra, através de seus discursos e de suas parábolas. Foi assim, através da palavra que ele apontou, acusou e denunciou o sistema dominante e opressor de sua época.

Através da palavra, também ensinou a justiça e a misericórdia, assumindo comportamentos e atitudes que mostravam na prática, o seu discurso. Constatamos assim, que o Nazareno (Jesus de Nazaré) não ficava só no discurso ou na reflexão, agia das mais variadas formas: expulsou vendedores do templo; acolheu pobres e doentes; questionou sábios, religiosos e governantes; transformou água em vinho; freqüentou festas; entrou na cidade dos poderosos como se fosse o rei daquela (Jerusalém), afrontando com aquele gesto, a classe dominante; reuniu um grupo de seguidores e os doutrinou em sua causa; fez política, se opondo ao poder opressor e dominador; etc.

É certo, que as palavras precedem as ações, entretanto as palavras sem ações, são mortas. Jesus não persuadia as pessoas porque falava bem e tinha um discurso afiado, mas sim, porque transformava o discurso em ações práticas, ele era um ser político, que falava num “Reino de Deus”, mas um “Reino de Deus na Terra”.

Para aquele que se diz cristão, nada mais lógico na sua caminhada, do que basear-se nas posturas e atitudes de Jesus de Nazaré, aquele, que vivia a realidade do seu contexto, mas não a aceitava, lutando para mudar a sociedade n a qual estava inserido. O supracitado contexto, era uma Palestina pobre, dominada por uma potência estrangeira e sufocada por uma elite político-religiosa local, que controlava o povo em subserviência aos romanos, visando somente, garantir suas regalias políticas e econômicas em detrimento da miséria da grande maioria da população, que vivia excluída socialmente. A referida elite, utilizava também a religião como fator de alienação e dominação.

Naquele contexto, Jesus reagiu, visando mudar a realidade do seu povo, instituindo ou revivendo uma teologia primordial judaica de justiça, liberdade e misericórdia. A nossa sociedade de hoje, se assemelha muito com a da época de Jesus, com a diferença que a potência estrangeira que nos domina, não é uma nação, e sim, o sistema do capital, concentrador da riqueza nas mãos de uma minoria, onde também vivemos na exclusão, e da mesma forma oprimidos pela elite dominante, que nada mais é, do que somente um representante do grande vilão, o sistema econômico, o mercado de consumo. Assim, a maioria das pessoas não tem direito à água, à terra, a um teto, à saúde, ao alimento, nem à educação.

Os grandes agentes promotores do modelo da sociedade em que vivemos são o “Estado” e o “Mercado”, onde o último tem sua influência cada vez maior na sociedade, em detrimento do poder do primeiro, pois o “Estado” é financiado pelo “Mercado” e vice-versa, ou seja, um sustenta o outro. Vale ressaltar, que o modelo de sociedade imposto pelo “Mercado” é um modelo opressor e exclusivista, desta forma, uma das saídas que poderíamos ter, visando a mudança do nosso quadro social, seria as ações da própria sociedade organizada, ou seja, o que se conhece hoje como “terceiro setor”, onde as organizações religiosas podem ser enquadradas nesse perfil, funcionando como agente político, transformador da realidade em que vivemos.

As comunidades de fé, sejam cristãs ou não, têm a possibilidade de empreenderem iniciativas organizadas, objetivando a busca e o desenvolvimento de uma sociedade mais solidária, justa e democrática. As organizações da sociedade civil, principalmente as religiosas, têm um enorme potencial de servirem como espaços, onde serão trabalhadas reflexões políticas sobre a realidade brasileira. Uma opção, talvez, seria a “via revolucionária”, no sentido de transformar o poder que governa e molda nossa sociedade.

Teríamos, neste caso, como comunidades religiosas, que agir como agentes revolucionários, transformadores, de forma que nossas igrejas, templos, terreiros, roças, salões, etc., funcionassem como espaços de reflexão e ações políticas na comunidade.

Temos que sair do discurso para a prática. A reflexão e o debate, são importantíssimos, pois toda ação começa por eles. As comunidades de fé, não podem ser vistas e aceitas como propriedade particular de uma pessoa ou de um grupo, pois elas existem para servir ao povo de fé, à pluralidade, à comunidade. Todos nós temos direito a uma vida justa, igualitária e digna, só que nós, temos que arregaçar as mangas e lutar pela vida que fazemos jus, entretanto, essa vida que desejamos não cai do céu, como apregoa a teologia da prosperidade, Deus não a providencia, ele simplesmente, através da nossa fé, desperta em nossas mentes, as forças para irmos à luta.

- Então o que fazer? Como fazer?
No mundo cristão, uma das opções seria usarmos os nossos espaços de reuniões, celebrações e encontros, para trabalharmos o lado político-crítico das pessoas, mostrando-as como funciona a sociedade, o governo que detém o poder, quais os interesses dos poderosos, como funciona a mídia, como podemos fiscalizar os políticos, como saber e exercer os nossos direitos, como fazer da democracia uma arma em favor dos mais pobres, como manusear o poder do voto, como protestar, se caso for necessário, em alguns momentos teremos que passar por cima de algumas regras, leis, etc.

Como conseguir tal proeza? Que tal fazendo, praticando, como Jesus fazia. Temos que participar das assembléias, nas ruas, nas praças, nas câmaras; organizar atos, manifestações, protestos, celebrações em sinal de apoio ou repúdio, etc.

Lembremo-nos, que toda religião tem a sua função política e a sua função social, e ainda, que viver como ser político ou como ser religioso, é viver em sociedade, assim, em todas as esferas da vida social, somos seres políticos e religiosos, pois por trás dos nossos ideais políticos, estão as nossas concepções religiosas e, a partir dessa combinação trabalhamos nossos interesses, pois desta forma, são geradas as nossas motivações que nos levam à prática das nossas ações.

O nosso grande mal, é que cada vez mais, nossos interesses estão se tornando individualistas, em detrimento dos interesses coletivos e comunitários, nos tornando seres egocêntricos. Se resolvermos adotar uma postura transformadora da nossa realidade, devemos iniciar tal empreitada, incentivando uma postura, por parte das pessoas, voltada para os interesses coletivos e comunitários, nesse campo o Cristianismo já tem um discurso pronto voltado para o “amor ao próximo” e para o “Reino de Deus”. Agindo assim, a liderança religiosa assume o papel político na prática, podendo ser entendido como profético, desde que defenda os interesses dos mais fracos.

Concluindo, não basta só falar e discutir, temos que realizar ações concretas, meter a mão na massa, ou melhor, estar no meio da massa. As ações servirão de exemplos a serem seguidos por outras pessoas. Provavelmente teremos dificuldades em agir, porque não temos coragem de sacrificar ou colocar em perigo nossas conquistas individuais, nossa posição na sociedade, nossa imagem, nossos títulos, nossos cargos, nossa liberdade, etc, em contrapartida, o fato de Jesus de Nazaré, no contexto em que viveu, não ser preso a essas coisas ou à vida social, favoreceu para que Ele tenha sido capaz de agir como agiu, de tomar a postura que tomou, de enfrentar os detentores do poder como enfrentou.

Se as correntes que nos prendem à vida social são mais fortes do que a causa comunitária da implantação do “Reino de Deus da Justiça Social” aqui na Terra, é por esse motivo que não conseguimos assumir uma postura revolucionária nazarena de denúncia e de libertação. A humanidade está fadada ao fracasso e ao extermínio, onde o próprio homem destrói a natureza e em conseqüência, a si mesmo, trazendo para si a guerra, a fome, a miséria, as doenças e as catástrofes naturais.

Por essa perspectiva, o homem (humanidade) assume o poder de um deus, pois ao se achar um deus, detém o poder de amar e de matar, mesmo que a grande vítima seja ele próprio, assim, o homem se torna um deus suicida.

Fernando Carneiro é Bacharel em Teologia e Licenciado em Filosofia.

As sete desgraças do Haiti: Onde está Deus?

As sete desgraças do Haiti: Onde está Deus?

Fernando Carneiro *

No mês de janeiro de 2010, o mundo assistiu a uma das maiores e mais traumáticas catástrofes da natureza, num país paupérrimo, o Haiti, na América Central. Desde o início de sua história, a violência imperou contra o povo haitiano.

No início, caiu sobre a região que é hoje o Haiti, a primeira desgraça. Lá era habitado por populações indígenas que foram covarde e violentamente escravizadas e dizimadas pelos invasores espanhóis no início do século XVI, os quais deram o nome da ilha de Hispaniola. Esses invasores e dominadores espanhóis utilizaram-se de dois tipos de violência para massacrar os índios donos da terra: primeiro a violência física fundamentada no poder das armas de fogo, animais, pólvora, etc; a segunda, a violência simbólica fundamentada na ideologia do etnocentrismo europeu que afirmava que os índios eram seres sub-humanos com uma cultura primitiva e uma religião demoníaca. Ambas formas de violência de dominação e opressão eram legitimadas pelas construções teológicas acerca do Deus cristão e fundamentadas na Bíblia.

Diante do genocídio das populações indígenas (a primeira desgraça) pergunta-se: Onde estava Deus?

Com o exterminio da quase totalidade dos indígenas da Hispaniola e a aculturação dos que sobriveveram implantou-se a segunda desgraça sobre a ilha: a escravidão de seres humanos trazidos do continente africano em grandes levas. Aqueles africanos escravizados são os ancestrais do povo haitiano de hoje, de maioria negra ou afro-descendente que compõe a população haitiana. Os negros escravizados do Haiti sofreram toda a gama de sofrimentos e humilhações que o sistema de escravidão colonial proporcionou aos subjugados em todos os países que foi implantado, no entanto, sob duras penas, o povo conseguiu manter vivos, aspectos importantes de suas culturas africanas, a exemplo das manifestações religiosas tradicionais, mesmo realizando trocas com o catolicismo e as religiões indígenas nos cinco séculos de convivência.

Diante do sofrimento do povo negro escravizado (a segunda desgraça) pergunta-se: Onde estava Deus?

Mais tarde, sobre a sofrida população haitiana, negra e explorada, veio a terceira desgraça: sua gente e sua terra foram passadas para o domínio da França, que as explorou das formas mais capitalistas possíveis, sugando-lhes toda a força de trabalho, além de suas riquezas, causando-lhes uma condição de miséria que perdura até os dias de hoje.

Diante da exploração econômica desenfreiada de consequências maléficas (terceira desgraça) pergunta-se: Onde estava Deus?

A partir da segunda metade do século XIX, já independente da França, o Haiti foi submetido à quarta desgraça. O país passou a sofrer profundas instabilidades políticas e econômicas, com direito à interferências, ingerências e até invasões norte-americanas, além de cruéis e violentas ditaduras, conduzindo a situação social do país ao caos, tendo como consequência, o estado de miséria econômica da grande maioria da população, hoje.

Diante das condições sub-humanas de vida da população haitiana (quarta desgraça) pergunta-se: Onde está Deus?

A quinta desgraça é associada à posição geográfica do Haiti, pelo fato de localizar-se numa região com frequêntes terremotos e furacões. No dia 12 de janeiro de 2010, o país foi atingido por um terremoto devastador, colocando abaixo a maioria das construções da capital Porto Príncipe, ocasionando um número de vítimas fatais próximo à casa das 200 mil pessoas, além de milhares de feridos. O retrato do país semi-destruído tornou-se digno do imaginário medieval sobre o mitológico "inferno", com milhares de corpos espalhados pelas ruas e um infinito clamor e ranger de dentes das pessoas que perderam seus parentes e amigos, sem contar as vozes vindas de debaixo das escombros, daqueles que soterrados gemiam por socorro em meio a um fedor indescritível dos corpos em estado de putrefação.

Diante do cenário de morte, dor e desespero de toda uma população (quinta desgraça) pergunta-se: Onde está Deus?

A sexta desgraça aparece na forma do preconceito racial e religioso de um haitiano que se diz representante do seu povo como Consul Geral do Haiti no Brasil, o racista e intolerante religioso George Samuel Antoine, que sem saber que estava sendo gravada sua voz, afirmou que o africano é um amaldiçoado e que por esse motivo, onde há africano o lugar é fodido, por causa de suas religiões como a macumba:

"A desgraça de lá está sendo uma boa pra gente aqui, fica conhecido ... Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo... O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá fodido." (PIRES, 2010)

Por azar do aludido consul, sua declaração foi ao ar em um jornal de grande circulação, causando indignação em muita gente. No entanto, muitas pessoas podem vir a pensar da mesma forma. Não seria de se estranhar se adeptos de certas comunidades religiosas cristãs, que frequentemente atacam as religiões de matriz africana no Brasil, taxando-as de demoníacas, espaços de espíritos malígnos, adoradoras do diabo, etc. tiverem a mesma concepção infeliz, igual a do referido consul. Defende-se no meio acadêmico, principalmente, que a discriminação religiosa contra as religiões de matriz africana está vinculada ao preconceito racial contra os africanos negros e suas culturas, uma vez que, a religião é uma das maiores expressões culturais de um povo.

Diante do irracional sentimento de discriminação racial sofrida pela população haitiana, por parte de lastimáveis racistas ou fundamentalistas religiosos, que se utilizam do próprio Deus cristão para legitimar seus preconceitos (sexta desgraça) pergunta-se: Onde está Deus?

Falando-se em Deus, aqueles que tiveram parentes sobreviventes da catástrofe consideraram tal fato uma graça ou milagre de Deus. Já aqueles que tiveram seus entes queridos mortos atribuem à vontade divina, a morte de seus parentes e amigos. Muitos se perguntaram: Por que Deus atingiu tão violentamente o povo haitiano? Ou então, por que Deus permitiu que tais tragédias tenham acontecido?

Ora, se diz pela teologia cristã, que Deus é onisciente, onipresente e onipotente e também; que nem uma folha cai sem a permissão de Deus; ou ainda, que Deus age na história da humanidade de forma sobrenatural. Diante de tais pensamentos, segundo Márcio Müller (2009, p. 24), sobre as indagações de Voltaire a respeito de um terremoto que destruiu a cidade de lisboa no século XV e, questionando a bondade de Deus diante do supracitado terremoto, que não poupou nem as vidas de crianças inocentes concluiu que: "[...] ou Deus quis impedir o mal e não pode, ou pode e não quis ou, nem quis ou nem pode, assim, se quis e não pode não é Deus; e se pode e não quis, não é bom".

Mais uma vez, diante do terremoto do Haiti, e da suposta maldade de Deus (a sétima desgraga) pergunta-se: onde está Deus?

Não quis ou não pode impedir tal mal? Será que Deus estaria no espírito de solidariedade das pessoas de todo o mundo que agiram de alguma forma, realizando ações de ajuda aos haitianos? Será que os médicos, militares, governos e ONG's que mobilizaram-se nesse sentido incorporam Deus? E as igrejas, o que fizeram? Orações? E os padres e pastores, o que pregaram? Será que Deus vai sair de casa (igrejas/templos)? Mas ele não seria onipresente? Se o é, então também estaria Deus entre as vítimas? Sob os escombros? Nas ruas sob os cadáveres? Quem seria o responsável pelo mal que caíu sobre os haitianos? Deus? A natureza? O homem? O acaso? O diabo como personificação do mal? Por que Deus fez isso? Se não o fez, por que não impediu? Se não impediu, por que permitiu? Se é onisciente, por que não previu? Se é onipresente, por que participou? Se é onipotente por que castigou?
....Onde está Deus?...Onde está Deus? Será que Urbano Zilles (2007, p. 102), citando Feurbach, tem razão quando afirma que "[...] todos os predicados atribuídos a Deus referem-se ao homem."? Será que o homem criou Deus, por não aceitar que nada mais é, do que um mero integrante produto da natureza? Será que do jeito que muitas espécies de animais se extinguiram da Terra, acontecerá o mesmo com a humanidade? E portanto, não consegue-se aceitar isso. Será que o homem não aceitando suas limitações diante da natureza e sua finitude existencial criou Deus projetando nele tudo aquilo que não possui, a exemplo de poder sobre tudo, vida eterna, conhecimento supremo, etc?

Nós somos Deus? então onde está Deus?

REFERÊNCIAS

MÜLLER, Márcio. A religião: sem razão. Ciência & Vida Filosofia.Voltaite e a Intolerância Religiosa. Escala: São Paulo, n. 40, p. 18-25, 2009.

PIRES, Tomaz. Consul geral do Haiti culpa religião africana pela tragédia. Notícias. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15. jan. 2010.

ZILLES, Urbano.Filosofia da religião, São Paulo, Paulus, 2007.

* Fernando Carneiro é Bacharel em Teologia e Licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira.


Artigo disponível em:

Salvador e o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Salvador e o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Fernando Carneiro *

Historicamente, no Brasil, as religiões afro-brasileiras, desde o princípio, foram associadas ao mal e, peculiarmente, consideradas como culto ao demônio, feitiçaria, magia maléfica, idolatria, etc. Tais conceitos de sentidos pejorativos tinham sua razão de ser, simplesmente, porque eram aplicados às expressões religiosas dos negros escravizados, portanto, de acordo com a ideologia racista, inferiores ou maléficas, uma vez que, havia a necessidade de reprodução e manutenção das relações sociais de poder, que legitimava a sociedade racista e escravocrata daquele período, como adverte Junia de Vilhena:

“Designar aos negros atributos demoníacos possibilitou que a escravidão fosse tomada como forma de redenção já que se fossem vítimas ou agentes de Satã os africanos não poderiam ser abandonados sem a tentativa de livrá-los da influência do maligno.” (VILHENA, 2007, p. 12)

Hoje a sociedade brasileira não é mais escravocrata no sentido literal da palavra, entretanto, ainda mantém uma estrutura racista. Tal afirmação é comprovada, segundo Kabenguele Munanga, pelos dados estatísticos quando apontam que a profunda desigualdade de renda caminha lado a lado com a desigualdade racial no Brasil (2006, p. 172, 178).

Em todas as sociedades humanas, o processo histórico mostra de forma clara, a extrema dificuldade que homens e mulheres tiveram e têm, ainda hoje, em cultivar uma cultura de respeito pelas diferenças, sejam diferenças étnicas, de gênero ou de crenças religiosas. Mas, inegavelmente, a intolerância às crenças religiosas do outro, tem sido e ainda persiste, como a maior causadora de conflitos e preconceitos entre as pessoas, as nações e as demais sociedades humanas.

O contexto histórico-geográfico em que procura-se tratar este artigo, concernente a conflitos de cunho religioso é a cidade de Salvador (Bahia), no Brasil, onde se diagnosticou o agravamento do embate entre a maioria das denominadas igrejas evangélicas (SILVA, 2007, p. 9), em confronto com as religiões de matriz africana ou religiões afro-brasileiras, principalmente, caracterizando uma acirrada e agressiva intolerância religiosa por parte da maioria das aludidas comunidades religiosas cristãs.

Em Salvador, vários segmentos da sociedade soteropolitana, vitimados por episódios explícitos de intolerância religiosa, têm reagido contra tais atos. Frutos dessa reação são inúmeras medidas de cunho individual ou coletivo, que vieram a introduzir ações de repúdio ou proibitivas contra tais práticas discriminatórias.

Uma dessas medidas que veio a contribuir na coerção da intolerância religiosa na cidade de Salvador e, no Brasil como um todo, foi a militância conjunta do povo-de-santo, da sociedade organizada através do movimento negro e dos terreiros de candomblé, associada à militância político-partidária municipal, estadual e federal, defensores dos direito das liberdades de consciência, de culto e liberdade religiosa, garantidas pela Constituição Federal de 1988:

Art.5ºTodos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII- é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII- ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (BRASIL, 1988)

Ainda como resultado dessa organização contra a intolerância religiosa, foi promulgada a lei Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, que instituiu a data 21 de janeiro, como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Essa data foi escolhida em homenagem à memória de Mãe Gilda, Yalorixá do Terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, que morreu no ano 2000, depois de ter a sua imagem depreciada no Jornal Folha Universal:

O PRESIDENTEDAREPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o Fica instituído o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa a ser comemorado anualmente em todo o território nacional no dia 21 de janeiro.
Art. 2o A data fica incluída no Calendário Cívico da União para efeitos de comemoração oficial.
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 27 de dezembro de 2007; 186o da Independência e 119o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Gilberto Gil
(BRASIL, 23007, p. 1)

A supracitada lei constitui-se na principal consequência de um dos casos mais conhecidos e emblemáticos de intolerância religiosa, ocorridos na capital baiana, o que envolveu a morte da ialorixá (mãe-de-santo), conhecida como Mãe Gilda, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, no bairro de Itapoã, quer findou gerando um processo judicial de indenização à família da aludida mãe-de-santo, cuja foto apareceu numa edição do jornal Folha Universal, da IURD, em 1999, numa matéria intitulada Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes. A foto foi reproduzida de uma edição da revista Veja de 1992, em que Mãe Gilda aparecia numa manifestação pelo impeachment do ex-presidente da república, Fernando Collor de Melo.

Em 2004, o juiz da 17ª Vara Cível de Salvador assinou sentença que obrigava a IURD a indenizar os familiares em R$ 1,372 milhão por danos morais (o equivalente a R$ 1,00 para cada exemplar da edição, valor que acabou reduzido posteriormente). De acordo com a família, Mãe Gilda faleceu de tristeza três meses depois da difusão do texto no jornal da Universal, sendo o processo jurídico impetrado pelos familiares da ialorixá, acompanhado pela mídia local e servindo de alimento de articulação do povo-de-santo, contra atos considerados de intolerância religiosa, tendo o caso noticiado em matéria do jornal A Tarde, em setembro de 2008, por autoria de Cleidiana Ramos:
Os herdeiros da ialorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos, a mãe Gilda, ganharam mais um round da luta travada com a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a igreja a indenizar os filhos e o marido da sacerdotisa do candomblé por danos morais. Segundo profissionais, é a primeira vez que o STJ decide sobre uma ação que envolve intolerância religiosa cometida por uma instituição. (RAMOS, 2008, 4)

Finalizando, entende-se que na sociedade brasileira, principalmente e, particularmente na sociedade soteropolitana, constata-se episódios de intolerância religiosa, alicerçada no preconceito étnico-racial de forma velada, sutil e institucional. Entre as principais causas da intolerância religiosa em Salvador aponta-se: o proselitismo exacerbado de motivação político-econômico de parcela das igrejas evangélicas; o preconceito étnico; e o desconhecimento a cerca das expressões culturais e religiosas da população afro-brasileira.

O povo-de-santo, como é denominado o conjunto dos fiéis das religiões afro-brasileiras em Salvador, juntamente com outros segmentos da sociedade soteropolitana vêm mobilizando-se no âmbito religioso, político e jurídico, visando desenvolver uma reação organizada na sociedade, contra a intolerância religiosa deferida por uma parcela das igrejas evangélicas da capital baiana.

Defende-se que a cultura ideológica racista da sociedade soteropolitana, associada ao desconhecimento da cosmovisão das religiões de matriz africana e ainda, a estratégia organizacional de mercado das principais igrejas neopentecostais, representam potentes combustíveis alimentadoras da fogueira da intolerância religiosa, na atualidade, em Salvador.

Como marco da luta contra a intolerância religiosa, diversas caminhadas pela paz e contra a intolerância de cunho religioso ocorrem na capital da Bahia durante o ano, sendo a mais emblemática a caminhada organizada pela Ialorixá Jaciara Ribeiro, herdeira espiritual de Mãe Gilda. Tal caminhada é realizada no dia 21 de janeiro tendo como ponto de partida a Praia de Itapoã e finalizando-se na Lagoa de Abaeté.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. Institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 28 dez. 2007. Disponível em: <>. Acesso em: 02 ago. 2009.

BRASIL. Constituição Federal de 1988.

MUNANGA, K, K. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil hoje. Coleção Para Entender, São Paulo: Global, 2006.

RAMOS, Cleidiana. Condenação inédita no país. A Tarde. Salvador, 20 set. 2008, Salvador, p. 4.

SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org). Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2007. 328 p.

VILHENA, J. . A violência da cor. Sobre Racismo, alteridade e intolerância. Revista Electrónica de Psicología Política, v. 6, p. 1-19, 2007. Disponível em:

Diálogo inter-religioso: Uma alternativa na busca do respeito

Diálogo inter-religioso: Uma alternativa na busca do respeito

Fernando Carneiro *

No Brasil colonial as práticas religiosas populares a exemplo do catolicismo popular e das religiosidades indígenas e africanas eram vivenciadas por “populações discriminadas” pela sociedade da colônia, como mestiços, índios, negros e pobres em geral. Por esse motivo, na documentação da época que discorreu sobre as religiões populares (manifestações de matriz indígena, africana ou catolicismo popular) constatou-se uma abordagem pejorativa e associativa à práticas demoníacas, em virtude dos interesses religiosos dominantes, que tinham como objetivo combater essas religiões ou combinações religiosas, em benefício da supremacia da religião oficial imposta na colônia (catolicismo romano importado de Portugal).

Visando alcançar tal objetivo, pregava-se que as demais manifestações religiosas existentes no meio do povo seriam falsas ou demoníacas. Na contramão de tal argumento, resgata-se a célebre frase de Émile Durkheim, em sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, quando afirmou: “No fundo, portanto, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem, ainda que de maneiras diferentes, a condições dadas da existência humana”. (2003, p. VII)

Tais construções históricas de cunho preconceituoso continuam vivas na atualidade. O fato é que, todo conceito pré-concebido ou preconceito, normalmente parte do desconhecimento acerca do outro, gerando um sentimento de reprovação do diferente. O reflexo dessas construções de outrora é identificado nos dias atuais na forma de “intolerância religiosa” contra as religiões de matriz africana e indígena, principalmente, não exclusivamente. No contexto da cidade de Salvador na Bahia, do início do século XXI (nosso campo de reflexão), atribui-se três causas à intolerância religiosa: 1. O desconhecimento das culturas e das religiões afro-brasileiras e indígena; 2. A agressiva estratégia proselitista de uma parcela das igrejas evangélicas e; 3. O preconceito étnico-racial de parte da sociedade soteropolitana. (CARNEIRO, 2009, p. 34)

As religiões de matriz africana, as religiões de matriz indígena, assim como, suas expressões sincréticas com outras expressões religiosas, não deveriam ser consideradas falsas ou inferiores em relação às religiões do tronco judaico-cristã, uma vez que são simplesmente diferentes, por possuírem distintas cosmogonias1, geradoras de distintas visões de mundo (cosmovisões), portanto, entende-se que uma das causas do preconceito construído a respeito dessas religiões seria o desconhecimento sobre seu conjunto de valores e forma de entender o mundo. Tal entendimento também é sugerido por Vagner Silva, quando afirma:

Somado ao desconhecimento sobre seu funcionamento e valores, elas acabam sendo vítimas de certos estereótipos como ‘magia negra’ (por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualística do bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs), superstições de ‘gente ignorante’, ‘cultos diabólicos’, etc. (SILVA, 2007, p. 14, grifo nosso)

Diante de tal raciocínio, pode-se concluir que os estereótipos construídos acerca de uma religião, da forma que acontece na atualidade vitimando, principalmente, as religiões de matriz africana, por exemplo, resultariam de construções por parte de outras religiões que se julgariam dominantes e superiores, numa clara relação de poder e dominação, como defende ainda, Vagner Silva afirmando: “[...] porque com freqüência as religiões são julgadas pelos conceitos e preconceitos provenientes de outras.” (SILVA, 2007, p. 14)

Aqui na Bahia, as principais vítimas, não as únicas, de intolerância religiosa são as religiões afro-brasileiras, sendo as mais popularmente conhecidas o Candomblé e a Umbanda. Além do desconhecimento acerca dessas expressões religiosas2, defende-se como uma segunda causa de intolerância, a agressiva estratégia proselitista de uma parcela das igrejas denominadas evangélicas, principalmente, igrejas classificadas como pentecostais e/ou neopentecostais.
Para melhor entendimento e identificação, as principais representantes pentecostais no Brasil são a Igreja Evangélica Assembléia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil, além da Igreja Brasil para Cristo e a Igreja do Evangelho Quadrangular (CARNEIRO, 2009, p. 19). Do pentecostalismo tradicional surge na década de 70, uma nova modalidade denominacional, o protestantismo neopentecostal representado, principalmente, pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), do bispo Edir Macedo e; pela Igreja Internacional da Graça, do missionário Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares), ambas com práticas de curas divinas e exorcismos, além de pregadoras da Teologia da Prosperidade3 e da Teologia da Guerra Espiritual4 (DREHER, 2007, p. 231).

Como uma terceira causa da intolerância contra as religiões afro, aponta-se a discriminação étnico-racial. Partindo-se da premissa que a expressão religiosa é a maior representação da cultura e identidade de um povo, exclui-se assim, quaisquer dificuldades de entendimento, para se chegar à conclusão que a intolerância religiosa, em relação às religiões de matriz africana no Brasil, por parte da sociedade brasileira de maioria cristã, apresenta cunho ideológico racista, com suas raízes na sociedade escravocrata estabelecida desde o século XVI e, que permanece no inconsciente coletivo de grande parte do povo brasileiro, até os dias de hoje.

O antropólogo e defensor de ações afirmativas, Kabengele Munanga (2006, p. 175), afirma que: “A discriminação ‘cultural’ vem a reboque da física, pois os racistas acham que ‘tudo que vem de negro, de preto’ ou é inferior ou maléfico (religião, ritmos, hábitos, etc.)”, vindo reforçar o argumento de que o racismo encontra-se nas raízes da intolerância religiosa, na medida em que se compreende que as religiões de matriz africana constituem-se na principal expressão da identidade negro-africana no Brasil.

Nessa construção de Munanga, referindo-se ao preconceito racial no Brasil, defende-se que a discriminação racial não é direcionada fundamentalmente às características físicas do não branco, especificamente, da população negra. Assim, pode-se concluir que tal preconceito transcende aos caracteres físicos da pessoa negra (cor da pele, formato do nariz, lábios, tipo de cabelo, etc.), abrangendo em particular, as culturas negras ou africanas em toda a sua pluralidade de expressão.

Na cidade de Salvador, especificamente, na contramão da intolerância religiosa criam-se esforços visando o diálogo respeitoso e pacífico entre diversas denominações religiosas da capital baiana, a exemplo de encontros, seminários, mesas redondas, atos ecumênicos, caminhadas, celebrações macro religiosas, etc., tudo com o intuito de exercitar o diálogo inter-religioso, na busca da conscientização pelo respeito à diversidade e liberdade religiosa, assim como, à convivência pacífica entre as diferentes religiões.

Dentro da perspectiva da promoção do diálogo inter-religioso considera-se um passo importante, o lançamento do livro intitulado Candomblés: Diálogos fraternos para superar a intolerância religiosa, produzido por depoimentos e manifestações dos componentes dos terreiros de candomblé, com a participação de alguns convidados especiais, entre eles o pastor evangélico Djalma Torres, configurando-se num raro exemplo de experiência prática inter-religiosa entre representantes do segmento evangélico e religiões afro. No supracitado livro, organizado por Rafael Soares Oliveira, o referido pastor batista escreveu um testemunho intitulado A convivência religiosa é possível, de onde extraiu-se os seguintes trechos:

[...] Nos últimos vinte anos, temos iniciado um diálogo ainda frágil, mas extremamente valioso, com grupos religiosos não-cristãos, especialmente com os terreiros de candomblé. [...] Aqui na Bahia a nossa convivência religiosa vem se dando em diversos momentos da vida da cidade: em celebrações religiosas comemorativas de datas históricas e/ ou religiosas; em atos em favor da paz e contra a violência; em diálogos inter-religiosos; em seminários sobre a visão religiosa cristã e não-cristã a respeito de temas de interesse da sociedade; e no trabalho de grupos e entidades sobre problemas comuns. (OLIVEIRA, 2007, p. 90-91)

O entendimento que se tem na atualidade é que o diálogo inter-religioso, ainda ocorre de forma tímida, em virtude de concentrar-se principalmente no nível de lideranças religiosas, não abrangendo os fiéis das comunidades representadas. Normalmente, eventos inter-religiosos ocorrem com a participação de lideranças (padres, pais e mães-de-santo, pastores, líderes espíritas, rabinos, xeiques, etc), e na maioria das vezes com reduzido envolvimento dos fiéis das denominações das quais os respectivos sacerdotes ou sacerdotisas são representantes. Na prática é mais um diálogo representativo do que participativo, fazendo-se uma analogia à nossa “democracia”.

Concluindo, dentro dessa perspectiva, chega-se ao consenso que necessita-se de ações visando expandir o diálogo inter-religioso, para fora do nível das lideranças, promovendo a passagem do “diálogo representativo” (somente entre lideranças) a um “diálogo participativo”, ou seja, realizado também e principalmente, pelos fiéis das religiões nas diversas comunidades, enaltecendo-se o dever de respeito às liberdades de pensamento, de expressão, de crença e de culto, imprescindíveis à paz entre as pessoas, entre as religiões e entre as nações.


Notas de Rodapé

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1 Originário do grego Kosmognia: criação do mundo) Teoria sobre a origem do *universo, geralmente fundada em *lendas ou em *mitos e ligada a uma metafísica. Em sua origem, designa toda a explicação da formação do universo e dos objetos celestes. Atualmente, designa as explicações de caráter mítico.(JAPIASSÚ, 2008, p. 59)

2 Manifestações de ordem religiosa que têm seu veículo na simbologia da linguagem, na literatura, na arte, em rituais variadíssimos, nos corpos doutrinários e em modelos de vida. (CROATO, 2004, p. 9)


3 Teologia pregada pelas igrejas neopentecostais, onde defende-se uma relação do fiel de intimidade e fidelidade com Deus, passando o dinheiro (bens) a possuir uma integração na vida litúrgica. Essa prática monetária vem representar o símbolo do pacto entre o fiel e o sagrado, onde o dinheiro pode ser entendido como uma mediação sacrificial (através de ritual de sacrifício). (CARNEIRO, 2009, p. 19)

4 Cabe a compreensão de uma restauração da dicotomia religiosa medieval entre o bem e mal. Segundo essa teologia, a saúde pode ser alcançada através de uma guerra espiritual contra espíritos malignos, quando, quase convencionalmente, são personificados nas divindades das religiões de matriz africana, fazendo-se uma associação dessas religiões ao mal ou aos demônios (ORO, 1999. p. 41,43).



REFERÊNCIAS

CARNEIRO, F. J. A intolerância religiosa nas igrejas evangélicas de Salvador (Bahia) na atualidade. Salvador, 2009. 38 p. Monografia (Bacharelado em Teologia). Faculdade Batista Brasileira.


CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Ed. 2, São Paulo: Paulinas, 2004, 521 p.


DREHER, M. N. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial, ed. 3, São Leopoldo-RS: Sinodal, 2007, 256 p. (Coleção História da Igreja; v.4).


DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 609 p.


JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia, ed. 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 309.


MUNANGA, K, K. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil hoje. Coleção Para Entender, São Paulo: Global, 2006.
OLIVEIRA, R. S. de (Org). Candomblé: diálogos fraternos para superar a intolerância religiosa. Ed. 2. rev e amp. Rio de Janeiro: KOINONIA, 2007, 107 p.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Interação de matrizes: como se organizaram e mesclaram as influências do catolicismo, das religiões indígenas e das africanas. História Viva Grandes Religiões. Cultos Afros. Duetto Editorial: São Paulo, n. 6, p. 12-19, mês/2007.



* Fernando Carneiro é Bacharel em Teologia e Licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira. E-mail: fernando.teologia@gmail.com

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