Diálogo inter-religioso: Uma alternativa na busca do respeito
Fernando Carneiro *
No Brasil colonial as práticas religiosas populares a exemplo do catolicismo popular e das religiosidades indígenas e africanas eram vivenciadas por “populações discriminadas” pela sociedade da colônia, como mestiços, índios, negros e pobres em geral. Por esse motivo, na documentação da época que discorreu sobre as religiões populares (manifestações de matriz indígena, africana ou catolicismo popular) constatou-se uma abordagem pejorativa e associativa à práticas demoníacas, em virtude dos interesses religiosos dominantes, que tinham como objetivo combater essas religiões ou combinações religiosas, em benefício da supremacia da religião oficial imposta na colônia (catolicismo romano importado de Portugal).
Visando alcançar tal objetivo, pregava-se que as demais manifestações religiosas existentes no meio do povo seriam falsas ou demoníacas. Na contramão de tal argumento, resgata-se a célebre frase de Émile Durkheim, em sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, quando afirmou: “No fundo, portanto, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem, ainda que de maneiras diferentes, a condições dadas da existência humana”. (2003, p. VII)
Tais construções históricas de cunho preconceituoso continuam vivas na atualidade. O fato é que, todo conceito pré-concebido ou preconceito, normalmente parte do desconhecimento acerca do outro, gerando um sentimento de reprovação do diferente. O reflexo dessas construções de outrora é identificado nos dias atuais na forma de “intolerância religiosa” contra as religiões de matriz africana e indígena, principalmente, não exclusivamente. No contexto da cidade de Salvador na Bahia, do início do século XXI (nosso campo de reflexão), atribui-se três causas à intolerância religiosa: 1. O desconhecimento das culturas e das religiões afro-brasileiras e indígena; 2. A agressiva estratégia proselitista de uma parcela das igrejas evangélicas e; 3. O preconceito étnico-racial de parte da sociedade soteropolitana. (CARNEIRO, 2009, p. 34)
As religiões de matriz africana, as religiões de matriz indígena, assim como, suas expressões sincréticas com outras expressões religiosas, não deveriam ser consideradas falsas ou inferiores em relação às religiões do tronco judaico-cristã, uma vez que são simplesmente diferentes, por possuírem distintas cosmogonias1, geradoras de distintas visões de mundo (cosmovisões), portanto, entende-se que uma das causas do preconceito construído a respeito dessas religiões seria o desconhecimento sobre seu conjunto de valores e forma de entender o mundo. Tal entendimento também é sugerido por Vagner Silva, quando afirma:
Somado ao desconhecimento sobre seu funcionamento e valores, elas acabam sendo vítimas de certos estereótipos como ‘magia negra’ (por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualística do bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs), superstições de ‘gente ignorante’, ‘cultos diabólicos’, etc. (SILVA, 2007, p. 14, grifo nosso)
Diante de tal raciocínio, pode-se concluir que os estereótipos construídos acerca de uma religião, da forma que acontece na atualidade vitimando, principalmente, as religiões de matriz africana, por exemplo, resultariam de construções por parte de outras religiões que se julgariam dominantes e superiores, numa clara relação de poder e dominação, como defende ainda, Vagner Silva afirmando: “[...] porque com freqüência as religiões são julgadas pelos conceitos e preconceitos provenientes de outras.” (SILVA, 2007, p. 14)
Aqui na Bahia, as principais vítimas, não as únicas, de intolerância religiosa são as religiões afro-brasileiras, sendo as mais popularmente conhecidas o Candomblé e a Umbanda. Além do desconhecimento acerca dessas expressões religiosas2, defende-se como uma segunda causa de intolerância, a agressiva estratégia proselitista de uma parcela das igrejas denominadas evangélicas, principalmente, igrejas classificadas como pentecostais e/ou neopentecostais.
Para melhor entendimento e identificação, as principais representantes pentecostais no Brasil são a Igreja Evangélica Assembléia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil, além da Igreja Brasil para Cristo e a Igreja do Evangelho Quadrangular (CARNEIRO, 2009, p. 19). Do pentecostalismo tradicional surge na década de 70, uma nova modalidade denominacional, o protestantismo neopentecostal representado, principalmente, pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), do bispo Edir Macedo e; pela Igreja Internacional da Graça, do missionário Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares), ambas com práticas de curas divinas e exorcismos, além de pregadoras da Teologia da Prosperidade3 e da Teologia da Guerra Espiritual4 (DREHER, 2007, p. 231).
Como uma terceira causa da intolerância contra as religiões afro, aponta-se a discriminação étnico-racial. Partindo-se da premissa que a expressão religiosa é a maior representação da cultura e identidade de um povo, exclui-se assim, quaisquer dificuldades de entendimento, para se chegar à conclusão que a intolerância religiosa, em relação às religiões de matriz africana no Brasil, por parte da sociedade brasileira de maioria cristã, apresenta cunho ideológico racista, com suas raízes na sociedade escravocrata estabelecida desde o século XVI e, que permanece no inconsciente coletivo de grande parte do povo brasileiro, até os dias de hoje.
O antropólogo e defensor de ações afirmativas, Kabengele Munanga (2006, p. 175), afirma que: “A discriminação ‘cultural’ vem a reboque da física, pois os racistas acham que ‘tudo que vem de negro, de preto’ ou é inferior ou maléfico (religião, ritmos, hábitos, etc.)”, vindo reforçar o argumento de que o racismo encontra-se nas raízes da intolerância religiosa, na medida em que se compreende que as religiões de matriz africana constituem-se na principal expressão da identidade negro-africana no Brasil.
Nessa construção de Munanga, referindo-se ao preconceito racial no Brasil, defende-se que a discriminação racial não é direcionada fundamentalmente às características físicas do não branco, especificamente, da população negra. Assim, pode-se concluir que tal preconceito transcende aos caracteres físicos da pessoa negra (cor da pele, formato do nariz, lábios, tipo de cabelo, etc.), abrangendo em particular, as culturas negras ou africanas em toda a sua pluralidade de expressão.
Na cidade de Salvador, especificamente, na contramão da intolerância religiosa criam-se esforços visando o diálogo respeitoso e pacífico entre diversas denominações religiosas da capital baiana, a exemplo de encontros, seminários, mesas redondas, atos ecumênicos, caminhadas, celebrações macro religiosas, etc., tudo com o intuito de exercitar o diálogo inter-religioso, na busca da conscientização pelo respeito à diversidade e liberdade religiosa, assim como, à convivência pacífica entre as diferentes religiões.
Dentro da perspectiva da promoção do diálogo inter-religioso considera-se um passo importante, o lançamento do livro intitulado Candomblés: Diálogos fraternos para superar a intolerância religiosa, produzido por depoimentos e manifestações dos componentes dos terreiros de candomblé, com a participação de alguns convidados especiais, entre eles o pastor evangélico Djalma Torres, configurando-se num raro exemplo de experiência prática inter-religiosa entre representantes do segmento evangélico e religiões afro. No supracitado livro, organizado por Rafael Soares Oliveira, o referido pastor batista escreveu um testemunho intitulado A convivência religiosa é possível, de onde extraiu-se os seguintes trechos:
[...] Nos últimos vinte anos, temos iniciado um diálogo ainda frágil, mas extremamente valioso, com grupos religiosos não-cristãos, especialmente com os terreiros de candomblé. [...] Aqui na Bahia a nossa convivência religiosa vem se dando em diversos momentos da vida da cidade: em celebrações religiosas comemorativas de datas históricas e/ ou religiosas; em atos em favor da paz e contra a violência; em diálogos inter-religiosos; em seminários sobre a visão religiosa cristã e não-cristã a respeito de temas de interesse da sociedade; e no trabalho de grupos e entidades sobre problemas comuns. (OLIVEIRA, 2007, p. 90-91)
O entendimento que se tem na atualidade é que o diálogo inter-religioso, ainda ocorre de forma tímida, em virtude de concentrar-se principalmente no nível de lideranças religiosas, não abrangendo os fiéis das comunidades representadas. Normalmente, eventos inter-religiosos ocorrem com a participação de lideranças (padres, pais e mães-de-santo, pastores, líderes espíritas, rabinos, xeiques, etc), e na maioria das vezes com reduzido envolvimento dos fiéis das denominações das quais os respectivos sacerdotes ou sacerdotisas são representantes. Na prática é mais um diálogo representativo do que participativo, fazendo-se uma analogia à nossa “democracia”.
Concluindo, dentro dessa perspectiva, chega-se ao consenso que necessita-se de ações visando expandir o diálogo inter-religioso, para fora do nível das lideranças, promovendo a passagem do “diálogo representativo” (somente entre lideranças) a um “diálogo participativo”, ou seja, realizado também e principalmente, pelos fiéis das religiões nas diversas comunidades, enaltecendo-se o dever de respeito às liberdades de pensamento, de expressão, de crença e de culto, imprescindíveis à paz entre as pessoas, entre as religiões e entre as nações.
Notas de Rodapé
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1 Originário do grego Kosmognia: criação do mundo) Teoria sobre a origem do *universo, geralmente fundada em *lendas ou em *mitos e ligada a uma metafísica. Em sua origem, designa toda a explicação da formação do universo e dos objetos celestes. Atualmente, designa as explicações de caráter mítico.(JAPIASSÚ, 2008, p. 59)
2 Manifestações de ordem religiosa que têm seu veículo na simbologia da linguagem, na literatura, na arte, em rituais variadíssimos, nos corpos doutrinários e em modelos de vida. (CROATO, 2004, p. 9)
3 Teologia pregada pelas igrejas neopentecostais, onde defende-se uma relação do fiel de intimidade e fidelidade com Deus, passando o dinheiro (bens) a possuir uma integração na vida litúrgica. Essa prática monetária vem representar o símbolo do pacto entre o fiel e o sagrado, onde o dinheiro pode ser entendido como uma mediação sacrificial (através de ritual de sacrifício). (CARNEIRO, 2009, p. 19)
4 Cabe a compreensão de uma restauração da dicotomia religiosa medieval entre o bem e mal. Segundo essa teologia, a saúde pode ser alcançada através de uma guerra espiritual contra espíritos malignos, quando, quase convencionalmente, são personificados nas divindades das religiões de matriz africana, fazendo-se uma associação dessas religiões ao mal ou aos demônios (ORO, 1999. p. 41,43).
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, F. J. A intolerância religiosa nas igrejas evangélicas de Salvador (Bahia) na atualidade. Salvador, 2009. 38 p. Monografia (Bacharelado em Teologia). Faculdade Batista Brasileira.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Ed. 2, São Paulo: Paulinas, 2004, 521 p.
DREHER, M. N. A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial, ed. 3, São Leopoldo-RS: Sinodal, 2007, 256 p. (Coleção História da Igreja; v.4).
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 609 p.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia, ed. 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 309.
MUNANGA, K, K. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil hoje. Coleção Para Entender, São Paulo: Global, 2006.
OLIVEIRA, R. S. de (Org). Candomblé: diálogos fraternos para superar a intolerância religiosa. Ed. 2. rev e amp. Rio de Janeiro: KOINONIA, 2007, 107 p.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Interação de matrizes: como se organizaram e mesclaram as influências do catolicismo, das religiões indígenas e das africanas. História Viva Grandes Religiões. Cultos Afros. Duetto Editorial: São Paulo, n. 6, p. 12-19, mês/2007.
* Fernando Carneiro é Bacharel em Teologia e Licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira. E-mail: fernando.teologia@gmail.com
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