terça-feira, 14 de outubro de 2014

O último “tiro” de José Saramago: uma face da violência humana



O Prêmio Nobel de Literatura de 1988, o escritor português José Saramago (1922-2010), deixou um projeto literário inacabado - aquele que seria o último romance do escritor a ser publicado em vida. O projeto ficara em fase de conclusão, em virtude da morte de Saramago em 2010. O escritor crítico-polêmico deixou três capítulos em seu computador pessoal, daquilo que seria seu próximo livro com o título Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, uma expressão retirada da obra Exortação da Guerra, uma tragicomédia de Gil Vicente.


A palavra “espingarda” é de conhecimento da maioria dos leitores, já “alabarda”, carece de significado – é a denominação de uma arma produzida na idade média, na qual se constituía de uma longa haste, normalmente em madeira, rematada por uma peça de metal pontiaguda, onde uma das extremidades laterais assemelha-se a um machado, enquanto a outra extremidade tem a forma de gancho ou esporão. Suspeita-se, portanto, que o título faria uma alusão à evolução técnica das armas no tempo, já que a espingarda é uma arma mais recente, de fogo (com uso de pólvora), de médio alcance, enquanto a alabarda é uma arma de combate corporal de curto alcance surgida na idade média.


O livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas – José Saramago: com textos de Fernando Gomes Aguilera, Luiz Eduardo Soares e Roberto Saviano, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, São Paulo, 2014, p. 111. É, portanto, uma edição póstuma de três capítulos escritos pelo autor, que aproveitando-se de sua experiência pessoal no contexto europeu da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), assim como, da  2ª Guerra Mundial (1939-1945), quando o autor vivendo em Portugal, pariu, como diria Sócrates, a ideia do livro. A obra ainda trás anotações de Saramago e textos dos três autores componentes do título, sendo o primeiro espanhol, o segundo brasileiro e o último italiano. O romance trata da vida de um homem de nome Artur Paz Semedo, burocrata de uma fábrica de armamentos, denominada “Produções Belona S.A.”. Logo aí, na primeira página, se pode perceber o espírito irrequieto de Saramago, ao escolher o nome da fábrica, Belona, explicitando e explicando no texto, a associação e alusão intencional ao nome da deusa grega da guerra – deusa Belona. 


O protagonista, Artur Paz Semedo, que é funcionário administrativo da fábrica, também é apresentado logo no início como um apaixonado pelas armas de fogo, chegando a ser conhecido pelas reações de “gozo” durante as apresentações aos funcionários, que a fábrica fazia dos novos modelos de armas. Amante das armas, amante da guerra e de tudo relacionado a elas, um ferrenho defensor da causa, chegando até a encontrar justificativa para o uso de bombas nucleares. Essa paixão pelas guerras teria sido o motivo que levara sua ex-mulher a deixa-lo, pois a mesma, chamada Felícia, é apresentada como uma pacifista radical, que enxergava no ex-marido uma contradição de vida.



O romance estabelece um ponto de partida para a trama – o momento em que Artur Paz Semedo, após ter assistido ao filme L’Espoir, de André Malraux, resolve ler o livro, inspirador do filme, do mesmo autor e, com o mesmo título, que trata da Guerra Civil Espanhola. Um fato, extraído da leitura do livro, perturba profundamente o espírito de Artur Paz Semedo - neste episódio do romance, Saramago, estabelece o teor ficcional da história humana entre Semedo e Felícia, regada a um grande conflito moral, o qual o leitor descobrirá com a leitura da obra.

Entra em cena, a partir daí, a figura do presidente da empresa, o Administrador-delegado, que com autorização e interesse do mesmo, dar-se-á, por parte do protagonista Artur Paz Semedo, uma investigação nos arquivos antigos da fábrica (anos trinta do século XX), a qual participara de guerras importantes no mundo, na qualidade de fornecedora de armas e, provavelmente, articuladora, em nível de governos nacionais, do ambicioso e poderoso comércio de armas.



Saramago mantém seu estilo literário da escrita, desconsiderando a pontuação: sem usar pontos de interrogação e pontos de exclamação; raramente usando parágrafos; com falas inseridas no texto, utilizando apenas letra inicial maiúscula para as mesmas; e o nome dos personagens em letras minúsculas. Sabia como nenhum outro utilizar-se inteligentemente da ironia, principalmente, ao tratar daquilo que ele chamava de “mito” da religião, o que ficou bem evidenciado nas obras O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Caim (2009).



Por fim, após o texto inacabado do autor, seguem as anotações de Saramago, nas quais aponta a preocupação que fecundara a ideia de escrever sobre o tema – seu questionamento gerador fora o porquê de nunca ter havido uma greve numa fábrica de armamento, utilizando-se ainda, do gancho a cerca do relato de uma bomba que não explodira na Guerra Civil da Espanha, associando tal fato, à referência contido na obra L'Espoir  (Malraux), sobre operários de Milão  fuzilados por sabotarem obuses. Nos mesmos relatos, Saramago já adianta ironica e surpreendentemente, como terminaria o livro: com um sonoro “vai à merda”, proferido por Felícia.

Fernando Carneiro